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Sobre a transitoriedade: ensaio sobre a pandemia

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No ano de 2020, o ano em que se comemora o centenário da pulsão de morte, quem poderia imaginar que, por conta de um vírus, seríamos assolados pelo risco de morte iminente tendo, inclusive, as fronteiras fechadas no mundo inteiro?

Vivemos hoje uma sobrecarga de estranhezas: um mundo novo tão diferente que a pandemia pela Covid-19 apresentou. Providências de ordem prática que precisaram ser tomadas – uso de máscaras, distanciamento social, excesso de informações que sequer conseguimos acompanhar, nomear e elaborar – trouxeram repercussões emocionais. Fomos subtraídos da convivência social e postos em estado de grande desamparo e insegurança. Obrigados ao isolamento e confinados em nossas casas, passaremos por graves impactos econômicos e na saúde da população, e sofremos sem saber como será o mundo depois.

Freud (1919) fala do Unheimlich, esse estranho assustador, que não é conhecido nem familiar, algo que não sabemos abordar. Para Freud, quanto mais orientados estamos, menos temos a impressão de algo estranho em relação aos objetos e eventos. Hoje, porém, parecemos mais desorientados do que nunca.

Esse vírus é invisível e ameaçador, mas se faz ver quando alguém morre, ou nas reportagens, ou quando vemos pessoas com equipamento de proteção, luvas, máscaras e faceshields, fazendo as regiões parecerem zonas de guerra; de certa forma, são. Zusman (2020) avalia que vivemos outro paradigma: “a recomendação de distanciamento físico é uma mudança de paradigma, já que somos gregários por natureza; precisamos de outros humanos para nos constituir humanos”. Hoje, porém, o outro, o espaço e a proximidade parecem nossos inimigos.

As impressões sobre um tempo semelhante estão descritas por Freud (1916), a partir de uma conversa com um poeta, um ano antes da guerra: “um ano depois irrompeu o conflito que lhe subtraiu o mundo de suas belezas. Não só destruiu a beleza dos campos que atravessava e as obras de arte que encontrava em seu caminho, como também destroçou nosso orgulho pelas realizações de nossa civilização, nossa admiração por numerosos filósofos e artistas, e nossas esperanças quanto a um triunfo final sobre as divergências entre as nações e as raças. Maculou a elevada imparcialidade da nossa ciência, revelou nossos instintos em toda a sua nudez e soltou de dentro de nós os maus espíritos que julgávamos terem sido domados para sempre, por séculos de ininterrupta educação pelas mais nobres mentes. Amesquinhou mais uma vez nosso país e tornou o resto do mundo bastante remoto. Roubou-nos do muito que amáramos e mostrou-nos quão efêmeras eram inúmeras coisas que consideráramos imutáveis” (p. 347).

Essa pandemia é, sem dúvida, um momento assim, uma situação traumática, relacionada a perdas significativas. O novo Coronavírus atacou partes fundamentais de nossa vida, e assim como o sistema imunológico de defesas, as defesas emocionais buscam lidar com o clima de insegurança e ameaça. Para Zusman (2020), “as defesas não são por si só patológicas; elas vêm para nos ajudar e se tornam patológicas quando se instalam sem podermos recompor nossas defesas habituais”.

A possibilidade de elaboração dessas angústias depende da estrutura emocional de cada indivíduo. Vemos pessoas com um nível normal de angústia, dada a estranheza do que vivemos; porém, vemos pessoas em quem – frente a essa situação inesperada, geradora de angústias que não podem ser digeridas pelo aparelho psíquico – isso transborda para o corpo que adoece. Se a mente não dá conta, é no corpo que aparecem as manifestações, ou seja, na ausência do símbolo e da palavra, é o corpo que sofre: via atuação (formas brandas, como andar pela casa, bater nas paredes, reclamar ou brigar com alguém, até formas mais graves, como o suicídio); via adicção (compulsão alimentar, uso excessivo de bebidas, cigarros e drogas); via psicossomática.

As organizações psicossomáticas diferem pelo sistema defensivo, pelo nível evolutivo e pela quantidade e qualidade das representações mentais. São as pulsões de vida e de morte que põem em movimento o sistema; há organizações mais emaranhadas na expressão corporal e outras mais próximas da neurose. Quanto mais evoluído o sistema representacional e a simbolização, melhores as defesas para lidar com movimentos regressivos. Uma situação traumática atual reativa a situação traumática precoce, expressa tanto no psíquico quanto no somático, como resultado das modificações na estrutura psicossomática (Steinwurz, 2017).

Quadros somáticos podem surgir ante uma situação traumática e depois desaparecer; porém, podem se instalar como doenças crônicas que geram incapacidade na vida pessoal e profissional, em diversos graus (Steinwurz, 2017). Eles são um sinal de que algo não correu bem no princípio do desenvolvimento. Houve uma dissociação na personalidade, que impede o indivíduo de perceber a relação entre a disfunção somática e seu psiquismo e integrá-la; sem conseguir uni-las, adoece.

Marty (1993) define a função materna como determinante na constituição do psiquismo, bem como na organização psicossomática. Um vínculo afetivo precário com a mãe cria matrizes traumáticas no desenvolvimento psíquico.

Para Winnicott (1949), o ambiente também é fundamental no desenvolvimento emocional. Uma mãe não suficientemente boa – com uma maternagem precária ou inconstante – interrompe esse processo, levando à dissociação entre psique e soma, característica da psicossomática. Sem uma preocupação materna primária, a mãe não oferece suporte egoico para o bebê, que é deixado por conta própria. Ele tem que se haver com suas próprias necessidades quando, muito precocemente, a mãe deveria cuidar delas.

A doença psicossomática seria um pedido de socorro para que se constitua esta integração. Cada sintoma terá um significado emocional, do qual o ego tira proveito para alívio dos conflitos. Estes sintomas orgânicos podem evitar que o paciente desenvolva sintomas psicológicos mais severos. Portanto, com a melhora do orgânico, o ego terá de encontrar outros meios de vazão para as tendências antes aliviadas pelo corpo.

Na busca desses outros meios, no isolamento que vivemos, encontramos o tempo como um aliado, em contraponto a tanto que perdemos. Muitos têm mais tempo para atividades que não faziam, como pintar, bordar e cozinhar, e para aproximar-se de amigos e parentes ainda que virtualmente. Na psicanálise, vemos um aumento da disposição para trabalhos voluntários para pessoas em estado de vulnerabilidade, e para profissionais da saúde da linha de frente com os pacientes com Covid-19.

Em belíssimo texto sobre a transitoriedade, em que relata uma conversa sobre o tempo, Freud (1916) fala sobre o significado dele para cada um: “o poeta admirava a beleza do cenário à nossa volta, mas não extraía disso qualquer alegria. Perturbava-o o pensamento de que toda aquela beleza estava fadada à extinção, de que desapareceria quando sobreviesse o inverno, como toda a beleza humana e toda a beleza e esplendor que os homens criaram ou poderão criar. Tudo aquilo que, em outra circunstância, ele teria amado e admirado, pareceu-lhe despojado de seu valor por estar fadado à transitoriedade” (p. 345). A evidência de que tudo que é belo e perfeito findará pode dar margem a esse pesado desalento, ou levar à rebelião contra tal fato: “de uma maneira ou de outra essa beleza deve ser capaz de persistir e de escapar a todos os poderes de destruição” (p. 345). Essa exigência de imortalidade, porém – alerta Freud – é um desejo nosso, não uma realidade.

E como estamos nesta pandemia? Descrentes e pessimistas como o poeta? Adoecendo no corpo ou na alma? Ou conseguimos lançar mão de defesas psíquicas, meios mais elaborados e alternativas criativas? A necessária adaptação às adversidades para enfrentar essa pandemia nos colocou em contato com nossa capacidade de resiliência, o que nos faz crescer emocionalmente.

Freud (1916) tem uma versão mais otimista da transitoriedade: “Uma flor que dura apenas uma noite nem por isso nos parece menos bela. Tampouco posso compreender melhor porque a beleza e a perfeição de uma obra de arte ou de uma realização intelectual deveriam perder seu valor devido à sua limitação temporal” (p. 346).

A análise será um recurso para criar, por meio do encontro analista-analisando, condições favorecedoras da ampliação do repertório psíquico, para que os conflitos possam ser pensados e experienciados ao invés de depositados no corpo. Para isso, nos aproximaremos de nossas vozes internas, para ajudarmos nossos pacientes a se aproximarem de suas vozes internas.

Nessa pandemia, tivemos de nos reinventar e nos adaptar a novas regras, novas maneiras, viver lutos. Tomo novamente as palavras de Freud (1916), quando fala da necessidade de renunciarmos ao que era precioso, mas terminou: “o luto […], por mais doloroso que possa ser, chega a um fim espontâneo. Quando renunciou a tudo que foi perdido, então consumiu-se a si próprio, e nossa libido fica mais uma vez livre (enquanto ainda formos jovens e ativos) para substituir os objetos perdidos por novos igualmente, ou ainda mais, preciosos. É de esperar que isso também seja verdade em relação às perdas causadas pela presente guerra. Quando o luto tiver terminado, verificar-se-á que o alto conceito em que tínhamos as riquezas da civilização nada perdeu com a descoberta de sua fragilidade. Reconstruiremos tudo o que a guerra destruiu, e talvez em terreno mais firme e de forma mais duradoura do que antes” (p. 347-348). Que nossa reconstrução, no pós-pandemia, seja firme, rica e forte.

 

Referências

Freud, Sigmund (1916). Sobre a transitoriedade. In: _____. Edição standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud (V. 14, pp. 345-348). Rio de Janeiro: Imago, 1976.

Freud, Sigmund (1919). O estranho. In: _____. Edição standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud (V. 17, pp. 273-318). Rio de Janeiro: Imago, 1976.

Marty, Pierre. A psicossomática do adulto. Porto Alegre: Artmed, 1993.

Steinwurz, Denise Aizemberg. Doença de Crohn e retocolite: abordagem psicanalítica dos fenômenos somáticos. In: Bejar, Victoria R. (Org.) Dor psíquica, dor corporal: uma abordagem multidisciplinar. São Paulo: Blucher, 2017. (p. 175-198).

Zusman, Alberto. Psicanálise e conflitos emocionais em tempos de covid. Encontro virtual promovido pela Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro, em 23 maio 2020.

Winnicott, Donald W. (1949). A mente e a relação com o psicossoma. In: _____. Da pediatria à psicanálise: obras escolhidas D. W. Winnicott. Rio de Janeiro: Imago, 2000. p. 332-346.

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Sobre a transitoriedade[1]: ensaio sobre a pandemia
[1]em referência ao título do texto de Freud de 1916.

*Denise Aizemberg Steinwurz é psicanalista, membro associado da SBPSP e mestre em Psicologia Clínica pela PUC-SP e membro do Espaço Potencial Winnicott (Depto. de Psicanálise da Criança) do Instituto Sedes Sapientiae. Contato: steinwurz@uol.com.br

 



Comentários

One reply on “Sobre a transitoriedade: ensaio sobre a pandemia”

Flavia disse:

Denise,
Importante sua reflexão, agradeço

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