O “pensamento” fascista e a função po-ética da psicanálise
Home Blog Política O “pensamento” fascista e a função po-ética da psicanálise*Ricardo Trapé Trinca
Isso que escutamos é o estalar de nosso “Ovo da Serpente”[1]? Ah, mas que estranho fascínio é esse exercido sobre nós, que perturba com um choque inebriante! E, enquanto esperamos nascer um monstro horrível, o que vemos é um filhote chamado propaganda, uma sereia que cativa e engrandece… Ah, mas como nos atrai essa sedutora vontade de poder!
Para nós, psicanalistas interessados nas interfaces entre a sociedade e a clínica contemporânea, os tempos atuais têm sido extremamente inquietantes e perturbadores. Escutamos de nossos pacientes com frequência cada vez maior a ideia de que a vida pública e privada deveria ser organizada com autoritarismo e rigidez. De que é preciso se aliar às pessoas de “bem”, contra a corrupção, etc. O que nos faz apreender um espírito justiceiro, segregador e antidemocrático, que cresceu e se desenvolveu entre nós. Este texto é um pedido para que observemos tanto em nós mesmos como em nossos pacientes tal presença, digamos, funesta e dissociada.
Vamos tentar descrevê-la. Podemos observar inicialmente o predomínio de um intenso sentimento de frustração, no qual o orgulho pessoal parece ter sido ferido ou roubado. Trata-se de uma frustração pessoal, mas também social. Essa frustração associa-se à ideia de que algo ou alguém destruiu a esperança de se ter uma vida melhor. Uma vida em que não só haveria menor necessidade de negociação dos nossos impulsos com o mundo, mas no qual nosso autoritarismo pessoal encontraria finalmente a esperança de ser autorizado, como um direito. Esta maneira de pensar, que chamamos de fascista, surge como uma conclamação à recuperação, por meio da força, deste orgulho roubado por alguém que, por sua vez, se tornou um usurpador.
Com este conclame, o fascismo impõe-se com uma linguagem traumatizante, cuja presença torna-se ameaçadora. Ele cria repentinamente um impacto imprevisível. Enquanto aquele que escuta tal discurso tende a sofrer o golpe de certas palavras e a se demorar sobre elas, tentando questioná-las, o discurso já foi adiante, como uma metralhadora de disparos contínuos. Contra esse discurso não há conversa; não existe um diálogo ou ponderações a serem feitas. Ou se aceita ou não se aceita. Caso seja aceito, o discurso transforma-se em algo que serve para ser retransmitido. Caso não se aceite, uma reação violenta contra o discurso é frequente; e, assim, ele é reproduzido na forma de seu avesso, propagando o ódio e uma organização maniqueísta da realidade. O poder que dele surge, cooptando seguidores e divergentes numa empreitada beligerante, advém de sua sede por obtenção de justiça, ou seja, de que o autovalor ou a posição perdida deve ser recuperada a qualquer custo; comportamento que encontra eco na formulação winnicottiana de tendência antissocial. É um discurso que visa ao poder perdido e à subjugação do perdedor.
Esse discurso, como a correnteza de um rio, corre numa só direção. Diferentemente de outros discursos humanos, polifônicos, nele há uma simplificação de sentidos possíveis. Portanto, a fala humana se empobrece, como numa fala de propaganda. E, como um autofalante, o discurso fascista não tem nenhuma receptividade, é uma propagação sem audição, cujo objetivo é realizar um reclame e conclamar outros iguais para realizar uma espécie de polarização narcísica, na qual se tende a girar em torno de ideias desprovidas de amizade e negociação. Há enorme fragilidade no conteúdo que é propagado, porque ele não é dialógico, reflexivo, e sim uma enorme restrição do escopo do pensamento[2] e da história. Além disso – e talvez um dos seus principais aspectos – a forma do dizer, sua estética, tende a ser tão ou mais importante do que seu conteúdo. Como não se trata de uma experiência do pensar emocional que se pode ter com alguém, ele assume a forma de um discurso e o seu valor parece repousar justamente nisso, em uma fala que desconsidera a outra mente, e que se faz de cima para baixo, composta por autoritarismo, agressividade e empoderamento. O conteúdo, cujo valor de verdade inexiste, fica em segundo plano, já que o principal é a sua estética. Assim, o valor de verdade de uma afirmação é substituído pelo valor de seu espetáculo impactante, em uma espécie de estética do choque, mas destituída do poder emancipatório que essa estética trouxe para a modernidade, especialmente nas artes (Parente, 2018). Quase não precisamos dizer quanto esse discurso é sedutor; a história que nos diga [3]!
Nessa maneira de constituir um “pensamento”, ou uma fala desprovida de apreço com a verdade, o conteúdo que se propaga é autoengendrado. Ela não se torna apenas uma falsificação da realidade, mas uma nova realidade, cuja existência se baseia no número de apreciações ou visualizações que recebeu. Não é necessário que encontre correspondência no real. Qualquer coisa pode ser dita sem ser refutada, pois o importante é a sua força de caráter traumatizante. Como a verdade, assim, não tem referência na realidade, ou na experiência emocional, mas na repetição do “meme”, a verdade transmitida passa a ser a do choque, que é sentido como “estar se falando a verdade”. E, paradoxalmente, nesse discurso há um reclame contra a mentira, de modo que sua estética passa a ser considerada, por si só, a expressão de algo verdadeiro.
Mas esse discurso não estaria, por sua vez, tamponando sentimentos de desamparo? Acreditamos, no entanto, que tais sentimentos passam a ser atribuídos àqueles que sentem o seu impacto, em movimentos de identificação projetiva. E assim, essa maneira de não pensar acaba por se tornar propaganda de preconceitos (discriminação social, étnica, racial, de gênero, etc), de alguém “forte” para alguém “fraco”. Essa é uma das razões pelas quais nessa forma de discurso não se permitem dúvidas, incertezas e insegurança. Elas são combatidas radicalmente, pois a dúvida abriria a percepção para a apreensão dos sentimentos de desamparo dos quais se pretende evadir.
Não podemos esquecer que estamos todos em igualdade de condições para nos tornarmos expressão de uma tendência humana como esta, que avista nossa maior desumanidade e barbárie. Precisamos constantemente pensar como, a cada dia, cada um de nós não se tornará um fascista[4]. Como fazer para que o nosso discurso não seja, ele mesmo, uma ferramenta de poder, cuja intenção seria impedir o encontro humano no qual o pensamento se desenvolva, envolvido pelo desconhecido das coisas. O encontro com o rosto do outro será sempre o encontro com o mistério. Por isso, é fundamental que possamos, a cada vez, reconhecer a presença de nosso próprio fascismo, podendo, por meio desse reconhecimento, dizer não a isso a cada vez, a cada instante de seu acontecimento. O problema, portanto, passa a não ser mais se somos ou não fascistas, mas quando somos, e reconhecer o momento de nosso enlouquecimento [5].
Como sabemos muito pouco sobre a nossa própria vida, estamos sempre rodeados por impotência, medos e sentimentos de desamparo. E, em face do desamparo, criamos ilusões alucinadas da realidade, com a intenção de nos protegermos dela. Se o desamparo, por um lado, é uma condição fundante do psiquismo humano, por outro, seu aparecimento pode revelar a ocorrência de fraturas éticas (Safra, 2004). Estas fraturas estão relacionadas a uma ruptura com a confiança e com a espera pela mente de um outro, condição indispensável – de amparo – para a ampliação das possibilidades psíquicas em face do desamparo. A aliança com o pensar fascista é a expressão da desesperança em relação ao outro, como alteridade, mas ocorre quando, pela impotência, busca-se a onipotência. Trata-se, portanto, de um falso amparo narcísico, que pode ser buscado, como comportamento político, em qualquer ideologia.
Sabemos que a atividade psicanalítica sustenta as incertezas do não saber, para ser surpreendido com a aparição do pensamento numa relação dialógica. Na situação clínica, a função po-ética consiste na surpreendente criação ou revelação da alteridade. Uma alteridade concebida como uma nova formação de metáforas e de histórias possíveis para um sofrimento[6]. Trata-se de uma atividade que devolve o valor da verdade ao seu conteúdo correspondente e restabelece o valor estético da pesquisa e da incerteza em relação ao saber, tornando a ação política oposta ao discurso de poder. Isso porque as metáforas e histórias são sempre incapazes de expressar todo o sofrimento. Ou seja, trata-se de uma ação de des-empoderamento, que restabelece, assim, a força da verdade. A função po-ética tem implícita uma ética do cuidado e da atenção aos sofrimentos humanos, que são muitas vezes impensáveis, ainda mais quando associados à nossa condição de desamparo.
Num mundo em que o discurso fascista se propaga como rastilho de pólvora, com um encantamento pelo choque, com ares de espetáculo, a tarefa psicanalítica, como resistência ao fogo, é continuar a mostrar seus princípios po-éticos. Pois o alimento que nossa mente precisa é aquele do encontro com a alteridade, que nos nutre com o sentimento de verdade, mesmo que seja provisória e incompleta.
[1] Faço alusão ao filme de Ingmar Bergman “O Ovo da Serpente”, Das Schlangenei(1977), que tratado período de incubação do nacional-socialismo na Alemanha.
[2]George Orwell em seu livro 1984, descreve o controle sobre a linguagem como um dos modos de se restringir o escopo do pensamento. Orwell descreve a Novilíngua, uma língua cujo objetivo seria tornar impossível designar certas coisas, de modo que aquilo tenderia a se tornar inexistente pela impossibilidade de ser designada. Ou seja, ideias indesejáveis a um sistema fascista não teriam como surgir de dentro dele.
[3]Brun (2018): “Por que o fascismo continua sendo tão atraente? Em Israel se apresenta o fascismo como um monstro terrível. Creio que é um erro, porque como todo mal tem uma cara amável e sedutora. (…) Como é possível que milhões de alemães tenham apoiado Hitler? Deixaram-se levar porque os fazia se sentir especiais, importantes, belos. Por isso é tão atraente”. No filme de Peter Cohen, Arquitetura da Destruição (1992), logo no seu início, o narrador diz: ”Dizem que numa aldeia alemã dos anos trinta, o povo tinha um conceito próprio do que era o nacional-socialismo. Eles achavam que o nacional-socialismo tinha uma ligação com a pureza (…) o sonho de criar, através da pureza, um mundo mais harmonioso”.
[4] Em 1977, Foucault escreve o prefácio do Anti-Édipo, de Deleuze e Guattari, formulando que há um inimigo maior a ser combatido, o fascismo. “Não somente o fascismo histórico de Hitler e Mussolini – que soube tão bem mobilizar e utilizar o desejo das massas, mas também o fascismo que está em todos nós, que ronda nossos espíritos e nossas condutas cotidianas, o fascismo que nos faz gostar de poder, desejar essa coisa mesma que nos domina e explora”.
[5] Na forma de transformações em alucinose (Bion, 1965/2004).
[6] Pensamos em Hanna Arendt: “Toda dor pode ser suportada se sobre ela puder ser contada uma história”.
Imagem: Retirada do filme de Ingmar Bergman, “O Ovo da Serpente”.
Ricardo Trapé Trinca é psicanalista, doutor em Psicologia Clínica pela USP, mestre em Filosofia pela PUC-SP e membro filiado ao Instituto “Durval Marcondes” da SBPSP.
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