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Entre arte e psicanálise: Experiência estética e esperança

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Parte 2[1]

Ao visitarmos uma exposição de arte, pode acontecer que determinada obra chame a nossa atenção, despertando em nós a vontade de entender o que ela nos comunica. E, nessa interação, primordial é a experiência, uma vez que é a obra que abre o debate entre o artista e seu espectador, é ela que suscita inquietações, exigindo estudos e pesquisa, antes que o espectador possa propor uma interpretação fundamentada. Ou seja, a interpretação espontânea de uma obra, com base na imediata associação livre do intérprete, revela antes o próprio intérprete do que a obra visualizada, como sucedeu a Freud diante do Moisés de Michelangelo (1914). Mas, sabemos que Freud não se limitou ao contato com as emoções – admiração e terror – despertadas nele pela obra. Ele foi além. E realizou um estudo original com os recursos que dispunha em sua época, alargando a sua leitura de si mesmo e da obra. Mais recentemente, Martha Argerich, considerada uma das maiores intérpretes da obra de Robert Schumann, numa entrevista, discorre sobre a sua atitude como espectadora diante da obra de um compositor e da sua maneira de interpretá-la (Gachot, 2003). E define, em poucas palavras, uma espécie de princípio que deve nortear o intérprete ao se aproximar de uma obra. Ou seja, o pianista não chega ao piano e executa a composição, de imediato, seguindo a partitura, como se já conhecesse o autor. A interpretação de uma obra leva muito tempo para ser realizada, demanda muitas horas de escuta das composições do autor. E chega um momento em que o pianista toca como se Schumann, por exemplo, tivesse composto para ele. Mas, essa afinidade estética surgiu de uma intensa frequentação das suas composições que exigiram pesquisa e intimidade com o autor, muito estudo de sua obra em seu tempo e no tempo do intérprete.

Ora, o princípio que norteou a atitude de Freud, ao se deparar com o Moisés de Michelangelo, e a relação de Martha Argerich com Schumann, vale para todos nós que apreciamos o contato com as artes. Ou seja, na relação com uma obra de arte, há que se ter um primeiro tempo – o tempo da experiência – segundo o qual a percepção do espectador vai ao encontro da realidade sensível-inteligível que se oferece a ele sem reconhecer nela formas e conteúdos fixos. E, nesse sentido, quer esteja diante de obras de arte ou dos seus analisandos, cabe ao psicanalista aguardar pacientemente a manifestação da poética que articula as maneiras de ser de umas e outros para, então, levar em conta as teorias que poderão fundamentar uma possível interpretação (Frayze-Pereira, 2016).

Assim, considerando o modo da minha própria relação com a arte – inspirado em Freud, bem como em Merleau-Ponty, Winnicott e Bollas, entre outros, afirmo que “experiência” é uma silenciosa abertura para o que não é nós mesmos e que em nós se faz dizer, é o que nos abre para tudo aquilo que é outro, suscitando inquietudes e exigindo de nós criatividade para que dele possamos ter algum conhecimento. E, nesse momento, cabe considerar com mais atenção a reciprocidade existente entre o artista e o psicanalista, entre a arte e a psicanálise.

Em primeiro lugar, pode-se dizer o seguinte: o que as artes nos oferecem ou nos ensinam é que a percepção e o pensamento não podem se fixar num dos polos das dicotomias tradicionalmente conhecidas: visível ou invisível, palavra ou silêncio, coisa ou consciência, sujeito ou objeto. Mas, como observou Marilena Chauí (2002, p.165), também fundamentada em Merleau-Ponty, as artes ensinam que o “pensamento precisa mover-se no entre-dois, sendo mais importante o mover-se do que o entre-dois, pois o entre-dois poderia fazer supor dois termos positivos separáveis, enquanto o mover-se revela que a experiência e o pensamento são passagem de um termo por dentro do outro, passando pelos poros do outro, cada qual reenviando ao outro sem cessar”. E a realidade que impede a fixação num dos polos das dicotomias é a realidade do próprio corpo que, ontologicamente, é um ser sensível que, ao mesmo tempo, é o que sente. Mais do que isso: é sensível enquanto sente, ou seja, poroso para si mesmo e em relação ao mundo, é um corpo reflexivo. E a reflexão realizada por ele transforma a visão que temos de como acontece o conhecimento (Frayze-Pereira, 1984; 2016).

Por exemplo, no entrecruzamento das mãos, como colocar uma delas como sujeito e a outra como objeto? Na experiência ambígua do ver, como determinar quem vê e quem é visto, se o corpo não é nem simplesmente coisa vista nem apenas vidente? Como sabemos, por intermédio de Merleau-Ponty, é preciso rejeitar os preconceitos seculares, subjetivista e objetivista, que colocam o corpo no mundo e o vidente no corpo ou, inversamente, o mundo e o corpo encaixados no vidente; é também preciso reconhecer que a ambígua experiência do corpo consigo mesmo revela o embaralhamento da distinção sujeito-objeto. E esse embaralhamento também se verifica na relação do corpo com as coisas e com os outros. E são as artes que constituem o campo privilegiado no qual essa experiência ambígua tem lugar de modo mais evidente. A partir daí, podemos dizer o que as artes nos ensinam. Elas nos ensinam sobre a impossibilidade de um “pensamento de sobrevoo”, pensamento abstrato, desimplicado do real, operação de um sujeito desencarnado que aplica teorias e conceitos aos objetos para manipulá-los, renunciando a se implicar com eles (Merleau-Ponty, 1964, p. 9). É esse o principal ensinamento que as artes têm a nos oferecer. Ou seja, o que o artista mostra ao psicanalista é basicamente como ele trabalha no campo simbólico, trabalho que se mostra como um movimento de transcendência, isto é, que ultrapassa o imediato, encontrando para ele um sentido novo através de uma ação orientada em função do possível. E não é exatamente isso que realiza (ou deveria realizar) o psicanalista com o seu outro, ao trabalhar na clínica? Trata-se de um trabalho que interroga a noção de método, tal como foi inventada na modernidade do século XVII, com o subjetivismo filosófico, e aperfeiçoada no XIX, com o objetivismo científico, para garantir a verdade dos conhecimentos, pressupondo, necessariamente, a separação entre sujeito e objeto do conhecimento. Ora, no trabalho do psicanalista que opera com o processo transferencial (Freud, 1917), assim como no trabalho do artista que se realiza como processo de formatividade (Pareyson, 1988), sujeito e objeto são inseparáveis. Trata-se, em ambos os casos, de um fazer processual que enquanto faz nega o feito, o instituído, e inventa o por fazer e o modo de fazer, o instituinte. E tal fazer implica uma transformação da postura do pesquisador ou do intérprete, seja ele artista ou psicanalista, não apenas com relação ao conhecimento, mas com relação à cultura no sentido amplo. E, decorrente dessa mudança de postura, talvez a consequência mais grave seja a seguinte: ao frequentar o campo das artes, como espectador, o psicanalista acaba se situando entre elas e, dado o relacionamento com as obras e os artistas, é ele quem sai transformado radicalmente. No contato com o trabalho dos artistas, dada a inquietação suscitada por eles, o espectador tem acesso a si próprio como pensador-vidente que é capaz de um saber nutrido pela experiência interminável da interrogação. Nesse sentido, o que as artes promovem é o contato com um trabalho temporalmente interminável, de tal modo que as experiências suscitadas pelas obras são caminhos para a “iniciação ao mistério do tempo” (Chauí, 2002, 165), isto é, literalmente, abertura ao desconhecido, ao outro, ao impensável que suscita em nós reflexão e transformação.

Numa perspectiva análoga, baseada em ideias de vários filósofos, poetas e artistas, mas sobretudo em diálogo com Freud, Green e Winnicott – Gabriela Goldstein pergunta (2005, p. 63): “por que o tempo da transitoriedade é o tempo da experiência estética?”. E, após certa elaboração, responde – “a experiência estética é uma experiência de limite cuja ambiguidade permite transitar por zonas inquietantes, entre sonho e fantasia, e dar conta da cisão e do objeto perdido” (p.123). Ou seja, essa experiência pressupõe a ideia da “perda” que se “manifesta no impossível do encontro” (…) ela “inaugura um novo campo de conhecimento, no qual a noção de alteridade, o outro, e a diferença implicam um efeito de subjetivação” (p. 64, 65). Quer dizer, “a experiência estética é uma experiência particular e específica que permite “um ir e vir entre o permitido e o proibido que, atravessando sucessivas camadas, ativa o desejo de conhecer e pensar com outro aqueles velhos capítulos da história do trauma” (…) Então, “o lugar da experiência é essa zona intermediária cujos limites permeáveis abrem a um jogo infinito onde o processo primário e secundário se mesclam e se entrecruzam em uma nova volta que, fora da patologia, podemos denominar “terciária”, desde que implica necessariamente a passagem pelo outro, em sua terceiridade”. Ou seja, trata-se de um lugar que “ é zona de jogo, de domínio e de desejo, de trauma e de fantasia” (p. 124). Na passagem pela zona da experiência, “zona intermediária, surge uma peça chave: a reprodução do trauma se daria na qualidade de trauma atenuado, o qual dá lugar a um processo onde o antes projetado, cindido ou esquecido poderia, agora, em alguma medida limitada, ir se integrando em um psiquismo ampliado. Não deixamos de notar e destacar que a experiência estética, em determinadas condições, credita uma significativa concordância com o que podem produzir o setting, a transferência e o campo analítico como campo de cura. E é a presença do outro qualificado – em posição de analista – quem, como ‘amigo silencioso’, acompanha os achados”. (p.125). Essa posição colocada por Gabriela Goldstein é importante e, do meu ponto de vista, merece certa atenção no tocante às suas implicações.

Com efeito, nesse processo em que se instaura a experiência estética, o psicanalista terá que abrir mão da chamada posição do sujeito do conhecimento, inteiramente determinado, terá que abandonar o recurso ao método, como instrumento para conhecer ou para interpretar, supostamente válido para o uso de qualquer psicanalista, independente da sua maneira de ser ou da sua personalidade, e assumir uma postura compatível com o trabalho no entre-dois – entre experiência e pensamento, entre o eu e o outro, entre corpo e alma, entre sujeito e objeto – postura mais próxima talvez do acrobata, do saltimbanco e do andarilho easy rider, do viajante e do alegorista nos ateliês, finalmente, do narrador na clínica. Em suma, segundo sugere Walter Benjamim (1985), a postura no “entre dois” é aquela adotada por todas as figuras que a modernidade não inclui, mas marginaliza como inúteis e sem localização produtiva definida. O psicanalista, assim como o artista, modernos-contemporâneos, não produzem objetos e conhecimentos positivos: ambos trabalham com a suas respectivas experiências, elaboradas por suas maneiras de ser, a partir das quais trabalham e realizam proposições que são capazes de instigar elaborações acerca de tudo aquilo que, conforme aprendemos com a leitura de Christopher Bollas (1987, 277), é conhecido mas ainda não foi pensado.

É bom lembrar ainda que foi no mundo moderno, do qual os deuses partiram, que a arte e a psicanálise inauguraram um novo modo sensível de pensar e passaram a ter um papel fundamental na formação de uma perspectiva simultaneamente interrogativa, interpretativa e crítica sobre o próprio mundo em que elas nasceram. E essa perspectiva que não é de ordem primordialmente epistemológica, mas sobretudo estética e ética, é o melhor que a artes e a psicanálise têm a nos oferecer, pois se abrirmos mão da perspectiva estética abdicamos de uma responsabilidade. Parafraseando Marcuse (1979, p.63), pode-se dizer que é uma abdicação que tem como consequência ética privar a humanidade da forma mesma pela qual ela pode criar outro universo no interior da realidade estabelecida: “o universo da esperança”. Essa possibilidade ética e estética é o que norteia a criação de todo objeto que resiste à morte, gestos e situações humanas que transcendem a dor instaurada pelas formas da violência psíquica, social e política, pela decadência física e moral, pelas doenças de todas as ordens. Assim é que em tempo de pandemia e constrangimento social, José Eduardo Agualusa (2020), ao ouvir Yamandu Costa, violonista gaúcho, compreendeu “que se não for através da música, da literatura, do cinema, das artes plásticas, nunca conseguiremos sair do confinamento espiritual que o isolamento físico tende a impor. A música abre portas que nem sabíamos que estavam lá. A arte nos ensinará a romper com este inverno perpétuo, e a avançar para o futuro inevitável, qualquer que ele seja, iluminando e inventando caminhos. Reaprenderemos a beijar-nos através da arte — ou nunca mais nos beijaremos”.

Ora, não por acaso, a imagem impressa na capa da edição do livro de Gabriela Goldstein em português e as que abrem os capítulos que o compõem fazem parte de uma série pictórica intitulada Promesse du bonheur. Tais imagens podem ser interpretadas como belos emblemas do que atravessa as linhas e entrelinhas do texto dessa autora, isto é, um sentimento de esperança de que certa inquietude estética seja compartilhada por psicanalistas e artistas, definidora da reciprocidade que os relaciona, ao afirmarem com suas práticas uma mesma proposição poética que é, ao mesmo tempo, política: recusar a pretensão de manipular as coisas e lutar contra tudo e todos que poderão nos impedir de habitá-las.

Referências

Agualusa, J.E. Troco tudo por um abraço. O Globo Cultura, 18.07.2020. https://oglobo.globo.com/cultura/troco-tudo-por-um-abraco-24538423

Gachot, G. Martha Argerich, conversation nocturne. France, IMDb, 2003.

Benjamim, W. O narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: Walter Benjamim. Obras escolhidas. São Paulo: Brasiliense,1985, pp.197-221.

Bollas, C. The shadow of the object. New York, Columbia University Press, 1987.

Chauí, M. Experiência do pensamento. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

Freud, S. O Moisés de Michelangelo (1914). O.C. (vol. 11). São Paulo, Cia das Letras, 2019, ps.373-412.

Frayze-Pereira, J. A. A tentação do ambíguo. Sobre a coisa sensível e o objetivismo científico. São Paulo: Ed. Ática, 1984.

Frayze-Pereira, J. A Corpo como obra de arte: tatuagem, clínica e crítica. RBP, 50-2, pp 78-93, 2016

Goldstein, G. La experiência estética – escritos sobre psicoanálisis y arte. Buenos Aires: del estante editorial, 2005. [ A experiência estética – escritos sobre Psicanálise e Arte. Terra de Areia (RS): Triângulo Graf. Ed., 2019].

Marcuse, H. La dimension esthétique. Paris: Seuil, 1979.

Merleau-Ponty, M. L’oeil et l’esprit. Paris: Gallimard,1964.

Pareyson, L. Estetica, Teoria della formativitá. Milano: Gruppo Editoriale Fabri, Bompiani, Sozogno, Etas S.P.A., 1988

*João A. Frayze-Pereira é membro efetivo e analista didata da SBPSP. Professor livre docente do Instituto de Psicologia da USP e do Programa de Pós-Graduação em Estética e História da Arte da USP.

Crédito: Gabriela Goldstein. Pintura 4 da série Promesse du bonheur (2008). Téc mix sobre tela (100cm x 70cm)

[1] Segunda parte do comentário do livro de Gabriela Goldstein, A experiência estética – escritos sobre Psicanálise e Arte, que seria apresentado no seu lançamento, na SBPSP, em março de 2020, cancelado devido à pandemia. Esta segunda parte, em continuidade ao publicado neste Blog no dia 03 de setembro de 2020, faz parte de um artigo a ser publicado (no prelo).



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