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Liberdade, Destino

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Saiu a edição 67-68 da Revista Ide – psicanálise e cultura, trazendo artigos focados no tema ‘Liberdade, Destino‘; além de trabalhos não temáticos, contos, poemas ou crônicas e resenhas de livros (clique aqui para acessar o sumário).

Editada desde 1975 pela Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, a publicação aceita trabalhos independentemente de os autores serem filiados à SBPSP e privilegia reflexões na interface da Psicanálise com a Cultura, buscando um diálogo com autores enraizados em diferentes áreas do conhecimento – antropologia, artes, filosofia, história, literatura, medicina, política, sociologia.

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EDITORIAL Ide 67-68

*João A. Frayze-Pereira

Considerando a grande quantidade de artigos recebidos como resposta à carta-convite que divulgamos para a composição da Ide 66, decidimos dar continuidade à reflexão sobre as questões decorrentes do tema que propusemos – Easy rider: sem destino[1] – nos números 67 e 68, reunidos num só volume. Assim, ampliamos a elaboração iniciada anteriormente, com as proposições dos autores que nos prestigiaram com seus escritos sobre liberdade e destino, muitos dos quais inesperados, como, por exemplo, a bela crônica escrita por Paloma Jorge Amado, lembrando João Gilberto[2]. Mas, há também uma razão prática que justifica este volume duplo: desde que fomos convidados a assumir a editoria da Ide, em 2015, notamos o descompasso entre ano da edição e volume editado, descompasso existente há alguns anos. Então, considerando a avaliação feita pelos órgãos competentes, à qual a revista é submetida, periodicamente, decidimos acertar o passo com esta edição com dois números, correspondentes ao ano de 2019. Finalmente, resta-nos dizer que, por ser um volume duplamente temático, justifica-se um editorial mais extenso que os anteriores.

Liberdade, Destino – o que esses temas querem dizer?

A ideia da liberdade é tema presente em vários momentos da história da filosofia. Entretanto, no momento contemporâneo, como podemos ver em Sartre, ela surge referida ao estado para o qual o homem tende como projeto. Quer dizer, definido como projeto existencial, o ser humano é condenado a ser livre. Nessa medida, pode-se pensar a liberdade como a potência humana para ultrapassar qualquer adversidade que impeça o seu desenvolvimento pessoal – ideia que cabe bem na clínica psicanalítica. Entretanto, se para o senso comum, muitas vezes, liberdade significa poder – é livre quem não encontra obstáculo para a realização do que quer –, não é nesse sentido que Sartre pensa a liberdade cuja experiência pode ser situada desde o corpo, que não interfere na condição livre do ser humano. Quer dizer, posso estar cansado, doente ou apenas com mal-estar e minha liberdade não sofre com minhas dores; ao contrário, sendo livre, “posso desafiá-las, ultrapassá-las ou mesmo negá-las”. (Carrasco, 2011, p. 40; Sartre, 1943, p. 29). Assim, se a liberdade é um valor que funda o humano, a sua radicalidade está justamente nessa condição de que não há nada que me reduza à matéria senão a morte. Ou seja, até a morte somos livres para decidir o nosso destino. Até o advento da morte no curso de uma doença, somos livres para querer viver com tratamentos ou morrer. E resignar-se é uma decisão livre, tanto quanto não se resignar, quando há luta contra as circunstâncias. Ora, não por acaso, Merleau-Ponty, contemporâneo de Sartre, também se interessa pela experiência da doença, pois no campo das enfermidades, mais do que em qualquer outra situação, é mais claro perceber que temos um corpo, que este nos dá limites, mais limites do que supomos ter e, no entanto, a doença não nos reduz a um pedaço de natureza. Quer dizer, mesmo subjugados pela doença, não renunciamos a dar-lhe um sentido humano, a vivê-la como experiência humana. Na doença, somos capazes de exercitar a nossa liberdade, ao não aceitarmos sermos parte inerte da Natureza. E, novamente, essas ideias nos remetem à psicanálise, ao que, muitas vezes, vemos acontecer na clínica. No entanto, parece-nos que a concepção do homem como projeto existencial é necessária, mas não suficiente para dar conta da questão da liberdade no âmbito do pensamento clínico-psicanalítico, posto que, como projeto, o homem é lançado no indeterminado, e é essa indeterminação existencial que demanda reflexão no tocante ao seu estar no mundo. Em outras palavras, há fatos que dispensam a nossa vontade para ocorrer, mas que só podem ser aceitos nos nossos termos. Por exemplo, não dependeu da nossa vontade a geração do nosso ser: nascer é um dado não deliberado pela nossa consciência. Entretanto, ao sermos colocados no mundo, podemos ir além do que somos, podemos nos inventar. A vida pode deixar de ser anônima para se tornar vida vivida, e esta, então, se inscreve na cultura e passa pela liberdade. Porque somos livres, nosso destino, implicado pelo fato de ter nascido, faz-se história, nossa história, que Merleau-Ponty (1945, p. 517), por exemplo, entende como a passagem do natural ao humano. A liberdade seria, então, a capacidade para darmos um sentido novo ao que parecia fatalidade, transformando a situação de fato numa realidade nova, criada por nossa ação e nosso pensamento. Nesse sentido, a liberdade não seria uma condenação à qual estaria sujeito o ser humano (como pensava Sartre), mas uma conquista feita por ele (como pensava Merleau-Ponty). Mas, por que os homens se ocupariam com a conquista da liberdade; afinal, para que serve a liberdade? Quanto a essa questão, lembramos de Hannah Arendt (2019), cuja concepção da liberdade é precisa – a liberdade não se define por um fim exterior a ela mesma, pois a liberdade é apenas para ser livre. Nessa medida, livre é o ser que não se pauta por uma condição exterior a ele, é aquele cuja liberdade não é uma escolha entre várias possíveis, mas aquele que, não se deixando determinar por forças externas, tem a força para se autodeterminar. Assim, “a liberdade, recusa da heteronomia, é autonomia” (Chaui, 2013, p. 198). Ora, essa ideia de liberdade ecoa na psicanálise contemporânea, correspondendo à noção de verdadeiro self, tal como proposta por Cristopher Bollas.

A partir dessas brevíssimas considerações, percebe-se que o tema da liberdade se articula a outra problemática – a questão do destino. Na verdade, ela é uma das temáticas-chave no pensamento dos filósofos, desde a antiguidade clássica, como Alexandre de Afrodisias que indaga: até que ponto o indivíduo, submetido ao destino, não deixaria de ser livre? (Sousa, 1999, p. 91). E, de fato, a interrogação do relacionamento entre liberdade e necessidade, relação que a figura do destino implica, é tão velha quanto a humanidade, e é por si só um capítulo antropológico, cujo desenvolvimento exigiria uma longa passagem não apenas pela história da filosofia, mas também pela mitologia e pela arte, antes de chegarmos à psicanálise. E, no campo da psicanálise, é interessante lembrar, como essa temática, mantida a articulação com a filosofia, pode ser abordada. Nesse sentido, apenas como um exemplo, lembro a distinção feita por Christopher Bollas (1992) entre “destino” e “fado”, termos cujas etimologias são diferentes: “fadoderiva do latim fatum, que é o particípio passado de fari, que significa falar. Fatum é uma declaração profética e fatus é um oráculo. Se fizermos uma revisão da literatura clássica – observa Bollas – , descobriremos ser o fado geralmente anunciado por meio de um oráculo ou pelas palavras de uma pessoa, por exemplo, quando o fado de Édipo é revelado pelo oráculo de Apolo em Delfos. No entanto o destino de Édipo é determinado pela sequência de acontecimentos que o oráculo anuncia. Destino, do latim destinare, significa fixar, segurar, tornar firme e a palavra destinaçãoé derivada dessa raiz. Assim, destino está vinculado mais à ação do que às palavras. Se fado surge das palavras dos deuses, destino é então um caminho pré-ordenado que o homem pode preencher (Bollas, 1992, p. 46).

Que lugar esses termos podem ocupar numa psicanálise? Considerando que a pessoa, ao procurar uma análise, está sofrendo e diz o que sente, ainda que de maneira vaga e imprecisa, pode-se afirmar que essa pessoa está fadada, isto é, pode interferir em seu campo de relações por intermédio do fluxo associativo e de interpretações, vindo a se livrar da maldição que a faz sofrer, cujo responsável foi o seu desconhecimento. Porém, simultaneamente ao fado, tal pessoa traz um destino, isto é, um potencial cuja realização depende menos de uma pesquisa reveladora do sentido da “sintomatologia oracular”, do que do movimento para o futuro através do uso do objeto, um desenvolvimento articulado à transferência (Bollas, 1992, p. 47). Em outras palavras, Bollas associa o sentido do fado ao conceito de falso self e à concepção winnicottiana do viver reativo, assim como articula a ideia de destino ao desenvolvimento do self verdadeiro da pessoa por intermédio do seu idioma pessoal que faz parte do “conhecido não-pensado” (1992, p. 56). Segundo essa concepção, sintonizada com a etimologia e a literatura clássica rastreadas pelo autor, destino refere-se a um potencial na vida de alguém, potencial que uma análise pode contribuir para fazer eclodir e facilitar ao indivíduo desenvolver. Nessa medida, uma das perspectivas de uma psicanálise é pensar o conhecido ainda não pensado, por intermédio do uso do objeto e da pulsão para revelar o self através do espaço e do tempo. Segundo essa perspectiva, ao pensar a sua situação, o indivíduo pode se tornar livre para usar os objetos e conquistar o seu destino, possibilidade cuja realização não é fácil, pois, no mundo atual, ela costuma implicar um alto custo. Quanto a isso, pode-se destacar, entre os artigos aqui publicados, o de Eduardo Goldenstein que se refere a Clarice Lispector, citando: “Ela é tão livre que um dia será presa. Presa por quê? Por excesso de liberdade. Mas, essa liberdade é inocente? É. Até mesmo ingênua. Então, por que a prisão? Porque a liberdade ofende”. Quer dizer, a liberdade, contrária à necessidade e ao medo, inibe e aterroriza aqueles que preferem a prisão oferecida pela confortável, mas entediante repetição do mesmo.

Em suma, as ideias que acabamos de resumir permitem a associação de outras, abrindo um campo bastante amplo para o leitor interessado nas relações entre cultura e psicanálise. Nesse sentido, cabe observar a composição da capa desta Ide, uma espécie de campo alegórico que alude à dimensão vertical da existência, desde o céu inquieto para onde aponta o braço da liberdade até o interior profundo da terra, uma caverna, em que é tecido o destino de cada um. E desde esse espaço duplicado na capa até o miolo desse volume duplo, nossa proposição foi a de instigar a liberdade da reflexão dos leitores, estimulando-os a associar livremente o espírito crítico ao destino da própria revista e, mais que isso, a encontrar durante a leitura o saber ligado ao sabor.

[1] Peter Fonda, conhecido sobretudo pelo filme Easy rider (1969), pelo qual foi indicado ao Oscar pelo roteiro, faleceu em 16/08/2019. Ícone dos anos 1960, não apenas por sua atuação como ator, mas por sua posição política, junto com a irmã, Jane. Com relação à sua passagem, a família Fonda declarou: “enquanto lamentamos a perda deste doce e gracioso homem, também desejamos que todos celebrem seu espírito indomável e amor pela vida. Em homenagem a Peter, por favor, façam um brinde à liberdade” (www1. folha.uol.com.br/ilustrada/2019/08).

[2] João Gilberto, cantor, violonista e compositor brasileiro, faleceu em 06/07/2019. Considerado por musicólogos e críticos como o artista que revolucionou a música brasileira ao inventar uma nova batida de violão, com influências do jazz para tocar samba, criou livremente a “bossa nova”. Lembrando a passagem de Joãozinho com saudade, Paloma Jorge Amado nos autorizou a publicação da crônica que escreveu na ocasião, a quem agradecemos, sensibilizados.

Referências

Arendt, H. (2019). Liberdade para ser livre. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo.

Bollas, C. (1992). Forças do destino. Rio de Janeiro: Imago. Carrasco, A. O. T. (2011). A liberdade. São Paulo:

Martins Fontes. Chaui, M. (2013). Contra a servidão voluntária. São Paulo: Autêntica.

Merleau-Ponty, M. (1945). Phénoménologie de la perception. Paris: Gallimard.

Sartre, J.P. (1943). L’être et le néant. Paris: Gallimard.

Sousa, E. L. A. (1999). O destino: a voz outra da incerteza. Neurose obsessiva. Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre, 17, pp. 88-93.

*João A. Frayze-Pereira é editor da Ide — psicanálise e cultura. Psicanalista, membro efetivo e analista didata da SBPSP.

 



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