Entrevista – Marion Minerbo
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Simulando tom ficcional na interlocução com um “jovem colega” imaginário, Marion Minerbo compartilha material clínico e outras experiências em Diálogos sobre a clínica psicanalítica
Autora de Neurose e não neurose e Transferência e contratransferência, ambos da editora Pearson, a psicanalista Marion Minerbo lança seu terceiro livro, Diálogos sobre a clínica psicanalítica (Editora Blucher), dia 1º de setembro, a partir das 18h30, na Livraria da Vila da Fradique. Mais do que um título para “iniciados”, trata-se de um painel acessível e fascinante sobre a “experiência de transmissão da psicanálise” que Marion vivenciou na última década. Não é um período qualquer. Para muito além da prática e dos estudos com que Freud revolucionou a história da humanidade, o livro, de tom supostamente ficcional, usa a forma de um grande diálogo, com um interlocutor que Marion chama de “jovem colega”, para compartilhar material clínico que convida à reflexão em uma época em que “as pessoas são obrigadas a ancorar sua identidade e a inventar seus projetos de vida em bases fluidas e movediças”, como Marion declara em entrevista exclusiva à Vila Cultural.
Psicanalista, analista didata e docente da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBP-SP), doutora em Psicanálise, Marion virou uma “fonte” imediatamente associada a dois temas distantes e de forte apelo midiático: os reality shows e a corrupção. “Os embates teórico-clínico- emocionais de meus interlocutores mais jovens me remetem, naturalmente, ao meu próprio percurso”, escreve, na introdução do livro, cujos diálogos contemplam seis temas: transferência, escuta analítica, trauma e simbolização, pensamento clínico, sofrimento neurótico e sofrimento narcísico. Leia a entrevista da psicanalista.
Vila Cultural. Você gosta de conceder entrevistas?
Marion Minerbo. Não dou entrevistas por telefone ou com gravação de vídeo porque não dá tempo de pensar. Fico inibida com perguntas à queima-roupa. O risco de dizer banalidades é grande. Em compensação, tenho grande prazer em conceder entrevistas por escrito porque mesmo que eu já tenha falado sobre um mesmo tema várias vezes, como BBB ou corrupção, as perguntas sempre me ajudam a pensar coisas novas. Há, claro, alguma vaidade em ser entrevistada, pois é uma forma de reconhecimento do meu trabalho. Mas o que mais me motiva é a oportunidade de compartilhar com um público mais amplo o acesso ao funcionamento mental propiciado pela psicanálise.
VC. Como define o novo livro e que avaliação faz da experiência de escrevê-lo?
MM. É um livro que foi nascendo aos poucos e meio que por acaso. Em 2013, me convidaram para falar sobre “transferência”, um conceito psicanalítico básico supostamente muito conhecido e sobre o qual já se disse muito – inclusive eu, que escrevi um livro sobre isso. Estava quebrando a cabeça para não chover no molhado, até que me veio a inspiração de escrever a um jovem colega transmitindo o essencial sobre o tema em linguagem coloquial e despretensiosa. Afinal, o rigor tem que estar nas ideias, e não na linguagem. A editora do Jornal de Psicanálise, publicação semestral do Instituto de Psicanálise Durval Marcondes da Sociedade Brasileira de Psicanálise, viu naquele texto o potencial para um projeto editorial com este formato e me convidou a escrever sobre outros temas. Os primeiros diálogos eram mais tímidos, pois havia algo de ficção na criação do personagem jovem colega, e afinal, eu não sou escritora. Mas fui me apropriando dessa semificção e me divertindo com a escrita. Me afeiçoei ao jovem colega e fiquei triste quando me despedi dele. Escrever me serve para metabolizar o que estudei e para, a partir dessas leituras, organizar um pensamento próprio. Para o bem e para o mal, só consigo pensar escrevendo. Minha mãe me dizia: “Se você não consegue escrever com suas palavras, não escreva, significa que você ainda não entendeu o suficiente”. Tenho prazer em transmitir algo que dificilmente o jovem colega vai aprender só nos livros: como pensa um psicanalista – ou melhor, como pensa esta psicanalista! – em sua clínica. Sou generosa, mas também exigente com o leitor: ele não deve esperar concessões ou
simplificações. Acho que o livro é sobretudo útil. É o que tenho de mais valioso para oferecer.
VC. Que critérios usou para definir os seis temas destacados em Diálogos?
MM. Baseada na minha experiência como docente escolhi temas que fossem úteis para a clínica, e usei exemplos – devidamente ficcionalizados – para dar vida às ideias desenvolvidas. Naturalmente, todos os cuidados foram tomados para garantir o sigilo e a ética profissional. Transferência, como já disse, é básico porque é a manifestação concreta do inconsciente na vida das pessoas e na análise. Eu já tinha escrito um livro sobre esse tema (Transferência e contratransferência, Pearson, 2012), mas este diálogo me deu a oportunidade de abordar outros ângulos e aprofundar certas questões. O inconsciente é uma espécie de cicatriz viva do passado que continua produzindo sofrimento e travando o presente, o que leva certas pessoas a procurar análise. Como reconhecer na clínica esta cicatriz viva e seus efeitos? Através da Escuta analítica, que é o segundo tema. Vou usar uma analogia para explicar o que é isso. Certa vez fui arrebatada pelo desejo de pintar. Frequentei o ateliê de uma artista que não me ensinou a pintar, mas formou o meu olhar, um olhar sensível à dimensão estética da existência. Pois bem: o analista tem um olhar, ou uma escuta, ou uma apreensão, da dimensão inconsciente das relações humanas. Mas assim como a formação do olhar não transforma ninguém em artista, a apreensão da dimensão inconsciente não é suficiente para ser um psicanalista praticante. É preciso desenvolver também a capacidade de pensar analiticamente, quer dizer, articular o universal da teoria dos livros, à singularidade do paciente que está no seu divã. Escrevi, então, o diálogo sobre Pensamento clínico, uma espécie de passo a passo sobre esse “pulo do gato”. O diálogo seguinte, sobre Trauma e simbolização, serve para ajudar o jovem
colega a ter uma visão mais organizada sobre como se “adoece” psiquicamente. Sem uma compreensão razoável sobre como se adoece, é difícil saber em que direção seguir do ponto de vista terapêutico. E por falar em “direção a seguir”, os dois últimos diálogos, Sofrimento neurótico e Sofrimento narcísico, mapeiam os dois grandes territórios do sofrimento psíquico, cujas “paisagens emocionais” diferem radicalmente. A escolha desses temas se deve, de certa forma, à repercussão positiva do meu livro Neurose e não neurose (Pearson, segunda edição 2013). Muitos leitores disseram que a visão de conjunto da psicopatologia psicanalítica, ancorada em exemplos clínicos, foi muito útil.
VC. Quem, na sua opinião, podem ser os leitores potenciais do livro?
MM. Acho que o livro será útil não só para estudantes e jovens colegas, mas para psicanalistas em geral, pois não importa quanta estrada já tenhamos percorrido, estamos sempre estudando para manter o “instrumento psicanalítico” afinado e afiado – caso contrário ele perde o gume. É claro que o público leigo curioso, os estudiosos de humanidades em geral e os próprios “usuários” também poderão curtir e aproveitar os diálogos, já que estão escritos de forma acessível.
VC. Quando alguém procura um analista, é comum a dúvida a respeito sobre a “linha” que ele segue. O que pensa sua sobre isso?
MM. Até meados dos anos de 1970 os psicanalistas se dividiam em tribos, dizendo-se seguidores deste ou daquele autor. No entanto, fosse qual fosse a linha, havia pacientes que “não se encaixavam” nela. Pensando bem, é muito estranho que o paciente tenha que se encaixar, pois o psiquismo singular é sempre mais amplo e complexo do que pode ser apreendido por uma única teoria. A comparação é meio tosca, mas imagine um marceneiro que se limite a trabalhar com um serrote. Pode ser suficiente para serrar tábuas, mas se quiser fazer uma mesa vai precisar de outros instrumentos. Enfim, a nova geração de psicanalistas se deparou com os limites de praticar a psicanálise seguindo uma única “linha”. Instigados por questões colocadas pela clínica, os autores mais criativos passaram a pensar “fora da caixinha”. Todos saíram ganhando. Por isso, hoje é mais ou menos consensual que um psicanalista precisa ter em seu repertório instrumentos conceituais diversificados. Essa é a posição a partir da qual escrevi os Diálogos e trabalho na minha clínica.
VC. Você tem escrito também sobre o sofrimento psíquico ligado a características do mundo contemporâneo. Fala em “miséria simbólica” e relaciona esta condição ao sentimento de tédio e de vazio. Poderia explicar essas ideias?
MM. É um assunto complexo, mas posso tentar. A modernidade foi o momento da civilização ocidental que se caracterizava pela força e solidez das grandes instituições. O sofrimento psíquico tinha a ver com a rigidez com que todos eram obrigados a se encaixar nos valores instituídos, vistos como absolutos, naturais e universais. A diversidade era condenada e excluída. A família patriarcal era o melhor exemplo disso. Hoje, boa parte das grandes instituições está em crise. Em um movimento pendular, passamos de valores e referências extremamente rígidos para a condição pós-moderna, caracterizada pelo relativismo absoluto. As referências de que necessitamos para dar sentido a nossas experiências são pouco nítidas, imprecisas, cambiáveis, vagas, incertas, ralas e movediças. Para o bem e para o mal, ninguém mais acredita em valores universais. A vantagem é que há liberdade para cada um inventar e viver sua própria vida. Se antes a diversidade era excluída, agora é festejada. A diversidade das famílias contemporâneas é um exemplo.
VC. E qual a desvantagem disso?
MM. A descrença absoluta e a fragilidade das referências simbólicas produzem um estado de miséria simbólica: as pessoas são obrigadas a ancorar sua identidade e a inventar seus projetos de vida em bases fluidas e movediças. Muitas vezes ficam perdidas, sem rumo. Sofre-se de um vazio, de um sentimento de irrealidade e de tédio, sintomas da falta de sentido da existência, muitas vezes confundidos com depressão. Esses pacientes nos procuram com queixas vagas, mal formuladas, porque faltam até palavras para descrever essa forma de sofrimento.
VC. Quais os efeitos dessa falta de rumo sobre a sociedade como um todo?
MM. Sintomas socioculturais como a proliferação e adesão a causas radicais – sexistas, alimentares, políticas, terroristas – podem ser entendidos como tentativas de preencher o vazio, “fortalecer” a identidade e dar um sentido à existência. Certo tipo de violência é outro sintoma desse mesmo sofrimento. Venho me perguntando se a emergência de forças conservadoras em vários países não seria uma tentativa de fortalecer – da pior maneira – as instituições atualmente em crise. A grande dificuldade parece ser manter a liberdade conquistada com a relativização de verdades tidas como universais, sem jogar fora o bebê com a água do banho.
VC. De onde vem o seu interesse por temas como a corrupção e os reality shows? Por que decidiu analisar assuntos tão diferentes?
MM. Como sempre, há uma boa dose de acaso nas direções que a vida toma. É possível que tudo tenha começado com meu doutorado na UNIFESP. Escrevi sobre compulsão a comprar porque na época, em 1990, estava atendendo uma paciente que apresentava este sintoma. Eu, que havia estudado medicina, precisei me aventurar em um território completamente novo: a sociedade de consumo, a sociedade do espetáculo, a cultura do narcisismo, a hiper-realidade etc. Tudo isso em paralelo ao meu trabalho no consultório. Passei a me interessar por fenômenos típicos da pós-modernidade que pareciam ter em comum a fragilidade do símbolo. Desde os crimes em família, como o de Suzane Richthofen que matou os pais, e outros em que são os pais que matam os filhos, até um tipo de violência que batizei de reality game – mistura de reality show e de videogame. Em 2007 publiquei meu primeiro artigo sobre reality show na Revista de Psicologia da USP. A partir daí, todos os anos, na época em que começava o BBB, eu era entrevistada sobre o tema. Sem querer, virei uma “especialista”. Com relação à corrupção a coisa foi um pouco diferente. Publiquei em 2000 um primeiro artigo intitulado Que vantagem Maria leva? Um olhar psicanalítico sobre a corrupção. Continuei desenvolvendo minha tese central em outros textos: pessoas podem ser subornadas, mas o que se corrompe (desnatura, apodrece) são as instituições, até que a própria corrupção se transforma, ela própria, em uma instituição. Depois, quando Dominique Strauss-Kahn, na época diretor do FMI, foi acusado de estuprar uma camareira de hotel, escrevi sobre os mecanismos psíquicos que levam o poderoso a “perder a noção”. Mas foi com a Lava Jato que comecei a ser constantemente entrevistada sobre corrupção.
VC. Como lida com o fato de ser convocada com tanta frequência para explicar, digamos, os “mecanismos psíquicos” da corrupção?
MM. Gosto muito do desafio de falar sobre o tema, pois cada jornalista faz perguntas que me obrigam a aprofundar ângulos ou aspectos nos quais eu não tinha pensado. Um exemplo: queriam que eu falasse sobre a “corrupção nossa de cada dia”. Sei que as matérias precisam de chamadas fortes. Então, mesmo não fazendo muito sentido falar nesses termos, aproveitei para mostrar a diferença que existe do ponto de vista psíquico entre a pura e simples transgressão, e atos que se pautam por uma lei paralela, não oficial e implícita. Nesse segundo caso, a pessoa simplesmente não sente que está transgredindo nada. Isso me levou a analisar o “jeitinho brasileiro” e a “lei de Gerson”. São verdadeiras instituições que ignoram a lei oficial e erigem valores que não podem ser transgredidos: respectivamente o ‘favor em nome da amizade’ e a ‘esperteza viril’. Quem não retribui favor, e quem se recusa a levar vantagem, é visto como transgressor dessas “leis” e punido pela coletividade. Eu não teria pensado nada disso sem as entrevistas.
VC. O que mais tem aprendido com seus alunos e pacientes?
MM. A sensibilidade para sintonizar com o funcionamento psíquico dos outros, pacientes e colegas, me ajuda a me colocar na pele deles, a empatizar e me identificar com suas angústias. Isso me ajuda a respeitar e a conviver com pessoas que sentem e pensam de maneira diferente de mim. Naturalmente, não podemos aceitar e concordar com tudo – há atos e atitudes que simplesmente não podem ser tolerados –, mas pelo menos podemos entender as razões e as motivações dos outros. Isso me ajuda a viver melhor.
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