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A máquina do tempo psicanalítica

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*Luiz Moreno Guimarães

— Breve retomada da teoria dos três tempos de Fabio Herrmann —

Não raro a análise parte de um mal-estar temporal. Uma mulher se apresenta dizendo que os dias transcorreram e ela não os aproveitou, que sua vida perdeu o sentido e é tarde demais para recuperá-lo, seu tempo passou e foi embora. Já outra relata que seus relacionamentos reeditam sem cessar o mesmo roteiro: seguem uma precisa sequência levando ao idêntico fim, seu tempo é cíclico e não pretende deixar de sê-lo. Outro ainda busca a análise porque notou que tanto ele como alguns de seus entes estão enredados em uma maldição familiar, seu diálogo é com a condenação que atravessa gerações e que é imune ao tempo. Todos poderiam se perguntar: que tempo é esse que me assujeita? Todos, tal como Hamlet, poderiam afirmar: “O tempo está fora do eixo. Pobre de mim, que nasci para pô-lo em seu lugar!”.

Por mais distinta que seja a procura pela análise, é como se o paciente apresentasse, logo nas primeiras sessões, a forma como seu tempo se encontra fora do eixo e, implicitamente, tentasse o clínico a colocá-lo em seu lugar. O que faz então o analista nesse início? Trai discretamente o pedido: em vez de propor a regulação do tempo desleixado no eixo considerado correto (no tempo morno da rotina), a análise piora um pouco as coisas. Simplesmente, convida o paciente a entrar na fenda temporal que se abriu em sua vida. De um lado, o tempo fora do eixo, de outro, o tempo em seu lugar — é precisamente na não identidade dos tempos em que trabalha o analista, e é nela que ele irá instaurar sua máquina do tempo. Há uma fissura no tempo, entremos nela se quisermos sair do lugar!

Se você pretende começar uma análise, seja como paciente ou como analista, prepare-se para uma viagem no tempo. Primeiro, como vimos, sobrevém o estranhamento temporal. Em seguida, evita-se a regulagem do tempo no eixo cronológico. E logo se instaura uma confusão muito parecida com as dos filmes de ficção científica, daquelas que causam certa vertigem quando tentamos apreendê-las.

A ficção temporal psicanalítica se dá mais ou menos assim. No presente da sessão, o paciente fala sobre o passado, revisita-se autobiograficamente. Mas é escutado pelo analista em um registro não referencial: este escuta a instauração do passado no presente. E ao proceder assim mantém vivo o potencial de alterar o passado. Uma vez que isso acontece, tudo muda: já não é mais o mesmo o futuro do passado narrado, já não é mais o mesmo o seu presente. Complicado, bem sei. Simplificando: no presente da sessão, paciente e analista são transportados para o passado, no qual qualquer modificação incide no futuro.

Tal operação atende sob o nome de ressignificação. Ela é arriscada. Uma simples alteração do passado pode tanto fazer surgir o humano quanto apagá-lo. Mas ela também é crucial em toda análise. Ao lembrar, dizemos a nós mesmos: eu sou o futuro daquele passado; ao ressignificar, o passado passa a ser outro: e eu já não sei quem sou.

Há, contudo, diferentes modos de operar a ressignificação analítica. É aí que entra a teoria dos três tempos de Fabio Herrmann.

Fabio dizia que a análise comporta três dimensões temporais: o tempo curto, o médio e o longo. Não se trata de uma divisão etapista ou cronológica, ao contrário, o aspecto principal dos três tempos é o fato de serem concomitantes e sobrepostos. Juntos compõe o tempo da análise. E como três partes de uma trança, a cada momento, um tempo aflora na superfície da sessão, enquanto os outros dois se cruzam por baixo.

Tempo curto. Há um antigo samba que versava “respeitem os meus cabelos brancos”. O compositor Chico César retoma-o modificando: “respeitem os meus cabelos, brancos”. Pronto: basta a introdução de uma vírgula para explodir a significação.

No tempo curto, as palavras perdem seu significado inicial, recompõem-se de uma maneira inesperada e devolvem ao enunciador um sentido que ele não visava proferir. Nele, escuta-se não apenas o lapso, mas a escuta é lapso: ela opera os rearranjos musicais das palavras (homofonias, aglutinações, escanções etc.), ao modo de um ato-falho a dois.

Tempo médio. Em um miniconto fantástico escrito por Thomas Bailey Aldrich, registraram-se essas poucas linhas lapidares: “Uma mulher está sentada sozinha em sua casa. Sabe que não há mais ninguém no mundo: todos os outros seres estão mortos. Batem à porta”.

O texto, ainda que curto, transcorre em tempo médio. Sentada em sua casa, a mulher padece de solidão em escala planetária. Está sozinha no mundo: é um ser sem seres. Esse é seu páthos: é a via pela qual ela cria o mundo que habita. Mas, em um simples ato, batem à porta: rompe-se o campo da solidão oceânica. Seu drama instaura-se não apenas na ausência de humanos, mas no exato momento em que essa ausência tem que se a ver com um ato mais-que-humano.

Tempo longo. Eis uma historieta medieval que possui diversas variações. Em uma feira, um homem viu de longe a Morte olhar estranhamente para ele. Aterrorizado, corre para a casa de seu senhor para pedir-lhe um favor, depois de contar-lhe a verdade: “A Morte assustou-me hoje na feira, empreste-me o cavalo para que possa fugir para Salamanca”. O senhor o emprestou, e o homem partiu a galope. Mais tarde, o senhor foi à feira, encontrou a Morte e lhe perguntou: “Por que assustou meu vassalo hoje?” E esta respondeu: “Não o assustei, eu é que me assustei ao vê-lo aqui: tenho um encontro marcado com ele hoje em Salamanca”.

Destino é isso: um encontro contingente que se torna necessário.

As clínicas psicanalíticas relatam — e portanto escutam — em tempos distintos: os lacanianos, e até certo ponto os bionianos, contam os casos em tempo curto; os kleinianos e tantos outros, em tempo médio; e os freudianos, em tempo longo. Temperando o Homem Psicanalítico ao seu gosto, cada qual supõe ser a sua a receita certa de narrativa. Freud, é claro, transitava com incrível desenvoltura entre as três formas de narrar, e talvez entre outras ainda hoje sequer reconhecidas.

Percebe-se que o legado mais imediato da teoria dos três tempos é a ruptura do campo da filiação psicanalítica. Quando a interpretação psicanalítica cumpre seu destino, ou seja, alcança seu devir-método, ela perde o seu sobrenome. Deixa de ser uma interpretação kleiniana, lacaniana, bioniana, etc. Nesse ponto, é possível cruzar palavras, operar rearranjos musicais sem que com isso precise nomear-se lacaniano. É possível romper campos sentimentais ou mesmo levar adiante a investigação do páthos, sem se autodenominar kleiniano. E assim por diante. A teoria psicanalítica em seu aspecto metodológico não solicita atestado de batismo.

Este texto é um convite para criarmos a máquina do tempo psicanalítica, que se dirige à terceira geração de analistas. Tal geração não se define pela idade e sim pelo ímpeto de ultrapassar o período das escolas. A ela seguem algumas indicações de leitura, são passagens da obra de Fabio Herrmann em que se esboça a teoria dos três tempos.

  • Capítulo 15 “Psicopatologia” do livro Introdução à Teoria dos Campos (2001).
  • Artigo “A supervisão vista de baixo” do Jornal de Psicanálise (v. 34, n. 62/63, 2001).
  • Capítulo “Quarta meditação: intimidade da clínica” do livro Sobre os fundamentos da Psicanálise (2015).

 

Imagem: Detalhe do quadro O abacaxi, collage de Silvio Alvarez, 2010 (www.silvioalvarez.com.br)

*Luiz Moreno Guimarães é membro filiado do Instituto Durval Marcondes e doutor pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Email: luizmorenog@gmail.com



Comentários

2 replies on “A máquina do tempo psicanalítica”

Eveline Alperowitch disse:

Excelente!

Enviado do meu iPad

Muniraakrouche disse:

Excelente texto! Coberto de uma plasticidade profunda!! Parabéns!!

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