Vida escolar, crescimento e constituição da subjetividade
Home Blog Artigos Vida escolar, crescimento e constituição da subjetividadeA educação dos filhos é um processo complexo e não há fórmulas preconcebidas que ditam um suposto caminho “certo”. Apesar disso, há questões e aspectos sobre os quais podemos e devemos refletir quando testemunhamos – no papel de pais ou de analistas – o desenvolvimento emocional e físico das crianças.
No artigo abaixo, a psicanalista Alicia Lisondo faz exatamente isso, abordando com profundidade o momento de ingresso das crianças numa instituição escolar e os principais fatores implicados nesse processo.
O filho na escola: quando iniciar a inclusão da criança numa instituição escolar? Por que tomar esta decisão? Está na hora?
Por Alicia Beatriz Dorado de Lisondo*
Nossa ciência-arte, a psicanálise, estuda a singularidade do processo de constituição da subjetividade de um ser humano, num ambiente específico e único. O bebê humano não nasce maduro, pelo contrário, muito vulnerável, com potencialidades a realizar graças às funções parentais. Minha intenção não é dar respostas normativas, contrárias ao espírito da psicanálise, mas sim ajudar a pensar.
A creche e/ou escola é uma instituição com cultura e normas próprias. Um espaço diferente do lar. Mas para que a criança vivencie uma certa continuidade entre a família e a escola, os pais podem escolher um lugar em sintonia com seus valores, com sua postura ante o mundo, com condições reais de arcar com a distância geográfica e os custos econômicos, tendo em conta o bom senso. O que seria melhor para esta criança, neste momento de sua vida, com estes pais, nesta família? Qualquer decisão implica enfrentar riscos, lutos por aquilo que não foi escolhido, turbulência diante do novo e do desconhecido.
A instituição escolar precisa ser coerente com seus princípios formativos e pedagógicos. Eles não podem ser palavras vazias, protocolares e sim palavras encarnadas no dia a dia, plenas de sentido. Não ceder às pressões dos pais e da sociedade neste mundo pós-moderno não é tarefa fácil quando, às vezes, a infância é sacrificada e a adolescência sufocada. A aprovação no vestibular, por exemplo, pode tornar-se a única meta a alcançar, limitando atividades artísticas, sociais, esportivas, políticas, procura de eficiência competitiva e um lugar no mercado de trabalho.
CRECHES E ESCOLAS MATERNAIS
Para se desenvolver, o bebê precisa que as funções parentais possam lhe oferecer, por meio de um vínculo real e mental, uma experiência de segurança básica, de continuidade entre a vida pré-natal e pós-natal, um ritmo estável, uma estimulação adequada. Essas funções como “pais suficientemente bons”, no dizer de Winnicott, surgem espontaneamente, tendo a intuição como bússola privilegiada. Os pais modulam as terríveis ansiedades do bebê e são catalizadores semânticos para dar significação às expressões corporais, gestuais e sensoriais do filho por meio da linguagem pré-verbal. Se quando surge o laleio: “Ah!Ah!Ah”, este é escutado e interpretado pelos pais como MAMÃE, PAPAI ou PAPAR, a comunicação não cai no vazio.
Numa profunda relação misteriosa e inconsciente, assim, o bebê constrói seu SER, apropria-se da linguagem, dos valores e ideais da cultura apresentados pelos pais. Realiza as potencialidades presentes no seu repertório tecendo, com os fios do reconhecimento e da valorização do ambiente que festeja cada conquista, a autoestima.
O chute na bola de um toquinho de gente pode ser celebrado como o gol do ídolo. E diante da festa, o filho repete a façanha, uma e outra vez. Também pode aprender, muito além do exercício motor necessário para permitir experimentar distâncias e forças no espaço, a perder, a tolerar frustrações, a esperar a vez de uma próxima tentativa; a potência masculina está presente no acerto festejado e na perda suportada. A criança ganha confiança e segurança no exercício de suas reais possibilidades e o primeiro ano de vida é fundamental para construir os alicerces da personalidade.
A criança pequena precisa construir temporalidade e espacialidade. Então ela não percebe, não realiza a duração do período escolar. Seu frágil psiquismo não pode imaginar o retorno dos pais antes da possibilidade de simbolizar, há como que um desaparecimento dos seres conhecidos, um “nunca mais”, porque não há reversibilidade entre idas e voltas, partidas e chegadas, encontros e despedidas. Quando em sofrimento, um minuto pode ser eterno.
Quando a criança não tem as figuras primordiais introjetadas na sua mente e não pode simbolizar, ou seja, re-criar a presença dessas figuras quando ausentes, a separação dos pais pode ser vivida como um esfacelamento, uma queda sem fim no abismo infernal, uma aniquilação ou fragmentação do ser. A imagem da criança agarrada, colada ao corpo dos cuidadores em desespero evidencia essas agonias primitivas. Diferente da criança capaz de dizer tchau e se despedir, se separar, que segura um objeto acompanhante, “transicional”, que lhe ajuda a realizar a passagem entre o conhecido mundo familiar e o estranho mundo escolar.
Não menos preocupante é a criança que aparenta indiferença, apatia, desinteresse nos contatos humanos, porque se refugia em barreiras de diversas espessuras, fronteiras dos refúgios, como ocorre quando há estados autistas, de gravidade muito variada, em curso.
O bebê bem dotado tem radares para perceber os estados mentais inconscientes das pessoas próximas. Para garantir AMOR pode vir a se sobre-adaptar aos valores e ideais parentais impostos, numa submissão que pode aplastar desejos e manifestações do verdadeiro self. Exemplo em sala de análise: uma menina de 2 anos e 7 meses, hipotônica pela privação da exercitação do corpo no espaço (rastejar, engatinhar, explorar o ambiente, manusear objetos, brincar de jogar objetos de certa altura e ou a certa distância, etc.); quando a mãe a deixou no chão ante minha interpretação, ela olhava para a mãe e logo me olhava como que pedindo permissão para cada movimento que ousava realizar, timidamente. Pensei que minha paciente inibia a exploração motora do novo ambiente para obedecer a normas implícitas que proibiam o movimento, a fim de evitar TODOS os perigos e a ameaça de uma nova convulsão. Só que assim agindo, os pais, inconscientemente, freavam seu crescimento. Além das questões neurológicas, a convulsão era uma explosão da excitação que ela não tinha podido metabolizar.
Adaptação e sobre-adaptação são estados mentais diferentes. O primeiro pode indicar que a criança é capaz de assimilar o NOVO, aprender com as novas experiências, ampliar o mundo com as relações com outras crianças e professores.
Já na sobre-adaptação, no interjogo entre o nível de exigência imposto pelos pais e a qualidade da personalidade em formação, há uma obediência submissa, que deforma ao aplastar o SER. A criança se adapta ou silencia as emoções por que está sobre-adaptada? A criança quando chora, protesta, esperneia diante de cada separação, ou adoece repetidamente, estaria expressando a imaturidade para ingressar/e ou continuar numa escolinha maternal-creche? São conciliáveis: expectativas, exigências, desejos, obrigações, realizações, sonhos da mãe (laborais, profissionais, econômicos, pessoais) com os cuidados psíquicos de um filho na primeira infância? Como?
QUESTÕES PARA PENSAR:
– Quanto menor é a criança, mais ela precisa da convivência num ambiente que propicie o desenvolvimento da personalidade, através das funções parentais maduras.
– Quando necessário, apelar a uma instituição é importante, mesmo que seja por períodos os mais breves possíveis. Quais os critérios para buscar essa instituição escolar?
– No lar é aconselhável que os pais entrem em contato emocional com o filho oferecendo uma atenção qualificada para, espontaneamente, brincar, desenhar, pintar, cantar, dançar, conversar, colocar limites, num vínculo verdadeiro que contemple o amor, o ódio, a ternura, o sofrimento, a alegria. Limitar o uso de TV e aparelhos eletrônicos é necessário para privilegiar os contatos humanos.
– Os pais, como seres humanos, fazem o possível e não podem exigir para si próprios, a perfeição. A culpa é uma má companhia. A superproteção, a pretensão de evitar sofrimentos necessários para o filho, as falsas compensações, as seduções e as chantagens não ajudam a crescer.
– Há sinais que podem revelar o mal-estar psíquico de um filho: doenças frequentes do psicossoma, alteração dos ritmos fisiológicos (sono, alimentação, controle esfincteriano): apatia, tristeza, desinteresse, dificuldades ou recusa nos contatos humanos; exigência de ficar aderido, colado nos cuidadores; terrores noturnos; ataques de pânico ou de raiva prolongados e frequentes sem motivo aparente; impossibilidade de aceitar limites e frustrações dosadas; graves fobias; transtornos no desenvolvimento etc. Então que fazer além de observar, sofrer, insistir?
– Diante da consciência desse mal-estar é oportuno consultar um psicanalista de crianças e adolescentes para investigar a situação. O tempo não resolve perturbações mentais. O tempo pode potencializar fatores patogênicos.
Uma avaliação psicanalítica levantará hipóteses diagnósticas sobre a criança e seus vínculos, convocando os pais a pensarem sobre as transformações necessárias na personalidade do paciente e na família.
Na criança pequena as mudanças podem ser assombrosas pela força de vida do protagonista da consulta. E mais: as configurações que perturbam o desenvolvimento emocional podem não estar cristalizadas. O psicanalista tem a chance de entrar em cena antes das consequências perigosas da cronicidade do quadro.
*Alicia Beatriz Dorado de Lisondo é psicanalista e membro da SBPSP
“O FINAL DA NOSSA EXPLORAÇÃO É CHEGAR ONDE
INICIAMOS E CONHECER O LUGAR PELA PRIMEIRA VEZ”
T.S. ELIOT.