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Uma abordagem psicanalítica do filme ‘O Minimo para Viver’

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Cássia A.N.Barreto Bruno

O fato é que vivemos num mundo onde os fenômenos surgem tão rapidamente que não temos tempo de assimilá-los e ficamos sem saber o que fazer diante do novo. Esse é o caso das novas doenças da alma, como diz Piera Aulagnier.

O filme ‘To the Bone’, do diretor Marti Noxon, realizado em 2017,  trata o tema  anorexia do ponto de vista da pessoa anoréxica, isso é, com a  indiferença afetiva que a caracteriza. Nesse sentido, não faz apologia  do mau relacionamento com a mãe e nem das dificuldades com a sexualidade, jargões que caminham juntos nesta questão.

Devemos entender que não estamos  preparados psicologicamente para os sofrimentos da alma, tais como sofrer o medo, a autoexigência, a inveja, a alegria, o amor. Temos medo desses sentimentos e recusamo-nos a vê-los e aceitá-los. É difícil  perceber que estamos apaixonados ou que estamos competindo com a mãe. Ficamos constrangidos, no mínimo.

É nesse contexto que o filme mostra uma jovem que, ao não poder elaborar situações complexas da vida, desenvolve recursos de sobrevivência psíquica utilizando o próprio corpo. Encarna no corpo e torna palpável aquele  afeto que na vida real não consegue enfrentar: controla o sistema digestivo, tomado na sua maior concretude, de tubo de entrada e saída de alimento, ali, onde o afeto não é digerido, é expelido para o corpo sem deixar marca psíquica.

Não tendo aparato mental que consiga fazer frente aos desafios do seu nível de exigência de ser a melhor profissional, de ser o ideal grego de beleza, já que ideal é por definição algo não atingível, a decepção consigo é repetidamente vivida no corpo, entre comer e vomitar, controlando severamente  e castigando seu corpo nos exercícios doloridos, para conseguir um pouco de paz mental.

Implícita está a fantasia inconsciente de que, ao exigir de seu corpo o impossível com os exercicios (quase um castigo), e privar-se dos alimentos (fonte da vida), seu ideal imaginário de perfeição será alcançado. Que perfeição é essa a ser alcançada? Em última instância, esta perfeição seria o encontro consigo mesma.

É poder ser verdadeira ao experimentar os afetos que são humanos: amor, ódio, conhecimento. Parece simples, mas afetos humanos são aterrorizantes, e exigem aprendizado de negociação com o real e também desenvolvimento de  vocabulário afetivo, o que implica em ambiente externo facilitador e amoroso, condição necessária para aprendizagem.

Nem sempre a  familia  é um ambiente facilitador de aprendizagens afetivas. Como é muito claro no filme, as angústias do grupo familiar  são projetadas na mocinha: ela é a doente, e as questões desse grupo sólido e assustado diante do mundo ficam  aglutinadas na jovem. Ela é a  expressão das angústias  culturais do grupo familiar.

Nesse caso, os pais ao não saberem  o que fazer porque também não têm vocabulário afetivo, não voltam sua atenção para dentro do grupo familiar e passam a  encarar o grito afetivo-corporal da adolescente como um problema só da filha e daí o passo seguinte e mais asséptico é a medicalização.

Ora, não existe uma parte separada do todo. No filme, isso é bem retratado. Quando a família interna a adolescente, o problema fica bem longe, bem circunscrito, na filha, e não na dinâmica familiar, “que alívio, não precisamos nos questionar”.

Lá, ela  encontra seus pares e, por meio da figura de um rapaz afetivo, verdadeiro nas suas idiossincrasias, verdadeiro consigo próprio antes de tudo,  ela encontra o  ambiente facilitador que é respeitar o ser humano como ele é, na sua verdade particular, no lugar de ficar exigindo que ele seja outra pessoa que não si proprio, ou pior, que seja um ideal de ego. Porque esse, nem com todo exercício do mundo será atingido. É um ideal. Só isso.

O humano é imperfeito, é real e não ideal. Se não amamos nossas imperfeições, estamos condenados a esse castigo de Tântalo.

O chefe da clínica, personagem de Keanu Reeves, trata a jovem como ser humano a ser preparado para o confronto entre afeto e real, entre processo primário e secundário, dirá Freud. O trabalho terapêutico por ele realizado é o de continência afetiva, de introdução ao processo civilizatório do vocabulário afetivo. Na clínica há um ambiente facilitador.

Uma última palavra: a anorexia atinge todas as idades e gêneros, casos muito graves devem ser tratados com equipes multiprofissionais, casos mais leves são bem tratados pela psicanálise. Há uma gradação de gravidade e o que vamos privilegiar na psicanálise é que a pessoa possa ter acesso a si própria com confiança. Que possa respeitar a sua verdade particular e amá-la.

 

Cássia Barreto Bruno é analista didata e docente da SBPSP, IPA. Organizadora do livro “Distúrbios Alimentares, uma contribuição da Psicanálise”. ed Imago.2011.

 



Comentários

6 replies on “Uma abordagem psicanalítica do filme ‘O Minimo para Viver’”

Regina Daher Rocha disse:

Muito bom!

Renata disse:

Parabens pelo artigo Muito esclarecedor

Renata Simon Psicopedagoga

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Dulce Almeida disse:

Amei este post. Grata Dulce

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Assisti o filme e gostei do artigo. Faço uma contribuição com uma frase, de meu ex-analista: “o corpo é a trincheira da mente”, isto é, quando não conseguimos pensar o corpo padece.”Os pensamentos estão à procura de pensadores”(Bion), isto mesmo, deixar pensar,isto é ,deixando que o pensamento surja. Um abraço!

Lúcia Passarinho disse:

Parabéns pelo artigo! Vi o filme ontem e o seu texto contribuiu muito para que pudesse repensar o filme

Erick disse:

Uma correção: dA diretorA Marti Noxon.

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