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TORRE DE BABEL E OUTRAS CONFUSÕES

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*Eva Maria Migliavacca

Os mitos constituem uma das fontes das quais a teoria psicanalítica bebeu desde o início. Alguns se destacam: Édipo, Éden e, menos explorado pelos psicanalistas, a Torre de Babel.

Babel, palavra hebraica, significa confusão; sugere uma coisa misturada com outra, de tal forma que a clareza do que é e do que não é fica obscurecida e conduz a equívocos e sofrimento.

Babel, a Torre

Lemos no Gênesis: “Os homens encontraram um vale na terra de Senaar, na Babilônia, sob o comando do rei Nemrod, e disseram: ‘Vamos construir uma cidade e uma torre cujo ápice penetre nos céus. Façamo-nos um nome e não sejamos dispersos sobre toda a terra’. E Javé, ao ver as ações daqueles homens: ‘Eis que todos constituem um só povo e falam uma só língua. Isso é o começo de suas iniciativas. Confundamos a sua linguagem, para que não mais se entendam uns aos outros’.”

O Deus antigo decidiu domar a vontade dos homens e submetê-los à sua lei: interferiu naquela empreitada e tudo mudou. Destruiu a torre e confundiu as línguas dos homens. Eles se desentenderam e se dispersaram pelo mundo.

Nemrod estava seduzido pela crença na própria grandeza. O mito não narra isso, mas podemos supor, pois ele pretende alcançar os céus, levantar uma torre que chegue até uma dimensão sem limites e que o faça sentir-se uma divindade. O resultado é catastrófico e instaura uma nova dinâmica.

Éden, o poema

Milton compôs “Paraíso Perdido”, belíssimo poema sobre a queda do homem. Adão e Eva vivem em harmonia no Éden, inconscientes dos riscos que os cercam. O Arcanjo Rafael, enviado por Deus, previne Adão do perigo: Satã, cheio de ódio e desejo vingativo por ter sido lançado das alturas celestiais às profundezas infernais, pretende encontrar meios de destruir a paz e beleza do Éden e seus habitantes.

Adão e Eva cultivam as plantas, flores e frutos do paraíso. Eva insiste com Adão para que a deixe cuidar sozinha do jardim. Queixa-se de que ele não confia nela. Adão argumenta, mas se rende. Olha-a, toda bela enquanto ela se afasta, cheio de preocupação e temores. Não ficou inteiramente convencido de ter tomado a decisão correta, o que vai se confirmar.

Satã já se imiscuíra no Éden. Assumiu a forma de um sapo e perturbou o sono da mulher, soprando-lhe dúvidas maléficas ao ouvido. Sabia que o melhor modo de atingir o odiado Criador seria atacar a criatura pelo lado mais vulnerável, a mulher desprevenida.

O par no Paraíso podia comer de todas as frutas de todas as árvores – exceto a da ciência do bem e do mal. É aí que Satã avança. Quando vê Eva só, sem a proteção do prudente companheiro, toma a forma de uma serpente dotada de voz humana para induzir a mulher à desobediência.

Todo simpatia, enrosca-se na árvore e argumenta com Eva que o fruto daquela árvore vai transformá-la numa deusa. Afinal ela, a serpente, comera o fruto e falava com voz humana, diz Satã. Que melhor prova de que ele dizia verdade?

O grande mentiroso convence a mulher de que o bem era um mal e de que o mal era um bem. Eva não contesta o absurdo. Afinal, “quem a proibiria de alimentar a mente e o sopro com aquele lindo fruto, de atraente aroma”?

Assim dizendo, a mão desatentada

Ergue Eva para o fruto em hora horrível;

Ela o toca, ela o arranca, e logo o come.”

O abalo na natureza, o estremecimento da terra por tal ferida, que Eva não percebe, prenuncia toda a mudança que virá.

Édipo, a tragédia

Há uma cena em “Édipo rei” em que toda a soma de equívocos se desfaz. Desde o início, Édipo caminha para o momento sagrado em que todas as coisas são recolocadas nos seus devidos lugares. Coincide com a descoberta não só de que ele era assassino e regicida, mas também parricida e incestuoso. Esse momento acontece no confronto entre um pastor que vivia escondido e o rei.

Ambos têm um diálogo áspero. O pastor sabe e Édipo desconfia que o que ele ouvirá mudará tudo. Porém, é preciso pronunciar as palavras que desvendarão a cegueira em que todos estavam mergulhados e confirmarão quem Édipo é. O pastor diz que o bebê devia morrer porque os pais – de Édipo – temiam a profecia de que ele lhes causaria a morte. Por que o salvou, então?  O pastor disse que teve pena. E que Édipo nasceu para um destino cruel.

Édipo: Que horror! Que horror! Todas as predições, afinal, se haviam de confirmar! Ó luz, que nunca mais te possa ver, porque se apura que nasci de quem não devia nascer, convivo com quem não devia conviver e matei a quem não devia matar!

O pastor encarna um valor imorredouro: a verdade imperecível. Usamos muitos subterfúgios para nos subtrairmos da verdade. Quando a escutamos, vivemos a dor psíquica do despertar da consciência. Vemos melhor nosso real tamanho: somos influenciáveis, vulneráveis à força de nossos desejos, dominados por necessidades, controlados por preconceitos, determinados por limites.

Essas narrativas falam da nebulosa dinâmica verdadeiro-falso. Representam uma condição mental na qual se enxerga o que se quer e não o que existe. Os três personagens se confundem, cometem equívocos de compreensão. Édipo, cego pela vaidade; Eva, pela soberba; Nemrod, pela prepotência.

A mentira nos cega e lança na Babel de tomar uma coisa por outra. Presente nas três narrativas, a verdade é dolorosa, mas transformadora. Em Édipo e no Éden, indica um processo de integração, que leva ao crescimento e na Torre de Babel, a dispersão, terreno propício ao preconceito e ódio.

O homem é limite. Se não houvesse limite, não haveria movimento, tudo seria estagnado. O ilimitado é sem forma, sem referência. Como diz Rovelli, o universo é finito. Ele se movimenta naquilo que revela sua finitude; por isso, expande-se. Após sua finitude só há escuridão. E não conseguimos precisar qual o limite. Por isso, como os personagens dessas antigas narrativas, transgredimos, avançamos sempre mais, ainda que o preço a pagar seja considerável. Só assim evoluímos.

 

Referências

Gênesis (1985) In: A Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus.

Milton, J (1994) Paraíso Perdido. Belo Horizonte: Vila Rica.

Sófocles (1961) Édipo rei. In: Teatro Grego. São Paulo: Cultrix.

Rovelli, C. (2018) A ordem do tempo. Rio de Janeiro: Objetiva.

Imagem: “Torre de Babel”, de Pieter Bruegel, o Velho.

Eva Maria Migliavacca é psicanalista e membro efetivo da SBPSP, professora titular pelo Departamento de Psicologia Clínica do IPUSP e tem vários artigos publicados em revistas nacionais e internacionais.

 



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