Sobre o aborto, com a psicanálise
Home Blog mulher Sobre o aborto, com a psicanálise*Ludmila Frateschi
Paulo Endo[1], no I Simpósio Bienal da SBPSP, conclamou a psicanálise e os psicanalistas a não se calarem quando seus muitos anos de produção científica tiverem algo a acrescentar ao debate público. É possível que a psicanálise possa contribuir com a discussão sobre manter ou não o aborto como crime?
Os movimentos pela defesa da vida das mulheres e pela igualdade de direitos entre mulheres e homens têm defendido, já há muito tempo, a autonomia de decisão de uma mulher sobre seu o corpo e o seu direito de fazer um aborto no caso de gravidez que não se sinta apta a levar a termo.
No Brasil, a legislação mantém o aborto como crime no Código Penal, prevendo de um a três anos de reclusão para aquelas que o praticam. Destacam-se apenas três situações em que a pena não se aplica: risco de morte da mãe, anencefalia fetal e gravidez decorrente de estupro. Alguns legisladores defendem que a criminalização seja ainda maior: O projeto de lei 5069/2013, por exemplo, levou milhares de mulheres às ruas e fomentou várias manifestações feministas em 2015, propondo tornar também crime o auxílio ao aborto[2]“ e acabou não indo para frente[3]. Também o texto atual da PEC 181/2015[4], originalmente criado para estender a licença maternidade de mães de prematuros, foi alterado por um deputado: num desvio, ele acrescentou uma emenda prevendo que a vida de fetos deva ser protegida acima de tudo e desde a concepção[5].
Por outro lado, uma sugestão legislativa para legalizar o aborto voluntário até a décima segunda semana de gestação tramitou na Comissão de Direitos Humanos do Senado, ensejando cinco consultas públicas entre 2014 e 2016[6]. Seu relator sugeriu o arquivamento do projeto no início deste ano[7]. No entanto, uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 442 ajuizada pelo PSOL com o argumento de que os artigos do Código Penal referentes ao aborto são inconstitucionais, passou a tramitar no Supremo Tribunal Federal (STF) e, em agosto, realizou-se mais uma audiência pública. Não sabemos ainda qual será o resultado final. A audiência ganhou ainda maior visibilidade porque, no mesmo mês, na Argentina, vimos milhares de mulheres nas ruas em vigília pela aprovação da legalização do aborto naquele país. Lá, o movimento teve uma vitória na Câmara, mas uma derrota no Senado.
A criminalização do aborto leva à enorme subnotificação dos casos e aos nefastos efeitos da prática que se faz clandestinamente. A pesquisadora Débora Diniz, expondo a Pesquisa Nacional do Aborto[8] na audiência do STF, apresenta o impressionante dado de que uma a cada cinco brasileiras com quarenta anos já fizeram ao menos um aborto. Diniz cita também o emblemático (mas, infelizmente, comum) caso de uma mulher que, mãe de outros filhos, morreu numa manobra com um talo de mamona, naquilo que seria o seu segundo aborto. Denuncia-nos, assim, como a criminalização obriga as mulheres a se esconderem, impedindo que procurem ajuda, orientação e cuidado e levando à repetição de uma situação tão dolorosa e arriscada. Convoca-nos, como analistas, a pensar: que mecanismo psíquico e social opera na hipocrisia que nega a realidade dos abortos clandestinos? O que favorece a repetição deste ato mortífero?
Outra expositora da audiência Pública, a pastora Lusmarina, do Instituto de Estudos da Religião (ISER)[9], recusa o dogmatismo e reforça os preceitos humanistas de sua Igreja: a importância do acolhimento e a singularidade de cada experiência. Ela fala em “escolhas possíveis”, lembrando-nos do preceito também psicanalítico de que um ato ou sintoma é sempre o melhor que o sujeito pode fazer com sua angústia naquele momento e, abstendo-se de uma posição que julga, diz ela: “Não cabe a nós como sociedade, como Estado ou como gente de fé, “amontoar aflição sobre aflição’ – como dizia Lutero -, culpa sobre culpa, medo sobre medo, abandono sobre abandono, dor sobre dor, ao ameaçar com a prisão e a categorização de ‘assassina’ alguém que está numa profunda situação de vulnerabilidade”.
Virginia Ungar[10], Presidente da International Psychoanalytical Association (IPA), disse: “Partamos de uma evidência: nossa época não é a de princípios do século passado quando nasceu a psicanálise. Tampouco a situação das mulheres que estamos aqui é representativa da maioria das mulheres. É verdade que antes houve outras mulheres no lugar de condução de muitas sociedades psicanalíticas. Isto não quer dizer que vamos negar o lugar vulnerável que tem tido e ainda tem a mulher em nossa sociedade”. Creio ser importante que possamos pensar nas diferentes condições em que as mulheres no Brasil fazem aborto. Segundo a Pesquisa Nacional do Aborto, a mulher que tem menos acesso a planejamento familiar, que pratica aborto nas piores condições e que tem maiores complicações é pobre, negra ou indígena, nortista ou nordestina. Ela precisa escolher entre ter um filho que não pode ou correr risco de vida. Entre adequar-se a um mandamento social de que não pode dar conta ou, como disse a Pastora Lusmarina, acreditar que é uma assassina.
Sabendo que a possibilidade de maternar não é universal entre as mulheres e que é fundamental para o desenvolvimento da criança, pergunto-me então o que a psicanálise e os psicanalistas têm a dizer sobre a criminalização daquelas que assumem o seu limite.
Retomo, por fim, um episódio da série “The Handmaid’s Tale”, inspiração das manifestações na Argentina. Nele, uma das personagens – obrigada a ter filhos para a comunidade, já que é uma das poucas mulheres férteis que resta – tenta cometer infanticídio. Ordena-se então que seja apedrejada pelas outras mulheres férteis. Estas recusam-se a cumprir a ordem. Compreendem, a meu ver, que não é possível apedrejar alguém por levar a cabo um desejo que reconhecem em si mesmas. Parece-me algo que um psicanalista poderia questionar: se em toda mulher há alguma ambivalência em tornar-se mãe, por que socialmente apedrejamos, matamos e criminalizamos mulheres que admitem não poderem tornar-se mães?
Imagem: Alejandro Moreyra para o portal Tiempo Argentino
[1] Paulo Endo, em fala no Fórum Violência e Psicanálise no I Simpósio Bienal da SBPSP
[2] No texto do PL: “Induzir ou instigar a gestante a usar substância ou objeto abortivo, instruir ou orientar gestante sobre como praticar aborto ou prestar-lhe qualquer auxílio para que o pratique, ainda mais sob o pretexto da redução de danos”
[3] Projeto de Eduardo Cunha (então do PMDB do Rio de Janeiro),
[4] De autoria de Aécio Neves (PSDB-MG)
[5] Jorge Tadeu Mudalem (DEM – SP)
[6] De autoria de André de Oliveira Kiepper, cidadão comum do Rio de janeiro, mestre em saúde pública
[7] Senador Magno Malta (PR-ES)
[8] https://www.youtube.com/watch?v=kuzNoNoYrTg
[9] https://www.youtube.com/watch?v=joAMPIaSkv0
[10] Virginia Ungar, O mesmo, O outro – fala na conferência de abertura do I Simposio Bienal da SBPSP
Ludmila Frateschi é psicóloga e psicanalista formada pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae. Pertence ao Serviço de Psicoterapia do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas (HC/FMUSP). É atualmente membro filiado do Instituto Durval Marcondes. Atende em consultório particular. Contato: ludmilafrateschi@gmail.com.