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Quando tudo isso passar, vai precisar de um outro carnaval!

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Mariangela O. Kamnitzer Bracco

Com essa frase bem humorada Alice se despediu de mim. Durante a sessão havíamos combinado de começar nossa quarentena analítica e prosseguir, se possível, online. Uma experiência nova para nossa dupla antiga. O tom alegre da despedida me animou, e me senti cheia de boas perspectivas; não só para o prosseguimento dessa análise, como também para os dias vindouros, que até então me pareciam totalmente sinistros e sombrios.

A necessidade de recolhimento exigida pelo coronavírus implicou em inúmeras mudanças em um ano que já começava a tomar ritmo. E assim, semana passada, vi-me despedindo também de outros pacientes, de colegas de seminário, de grupos de trabalho, de familiares e amigos. E, last but not least, do meu analista. Ainda que o mundo virtual acenasse promissor, tudo aconteceu de forma rápida e avassaladora. E essa, penso ser a crueldade desse vírus; a velocidade e a forma insidiosa com que se espalha e que não dá tempo. Tempo para que os doentes sejam tratados e não se acumulem nos hospitais. Tempo, essa matéria prima fundamental no trabalho psíquico.

Nessa semana caótica, terminei uma sessão dizendo para meu analista: sem surto e sem surtar. E esse seria o mantra a ser entoado. Outra medida protetiva foi refugiar em meu narcisismo e me acalmar pensando que não pertencia ao grupo de risco. Mas vi em mim, em meus pacientes e em todos ao meu redor, fortes angústias emergirem. Angústias despertadas pelos ameaçadores fatos recentes que, de alguma forma, reavivavam angústias passadas, da história pessoal e coletiva.

Assolada por meus fantasmas persecutórios, recorri aos diários de Helene Lilly, minha avó judia-alemã.  Em 1938, morando em São Luís do Maranhão, ela escreveu com muita precisão e perspicácia sobre a crescente brutalidade dos nazistas, que tanto sofrimento infligiram também a nossa família. Depois dessa leitura, e, inspirada em Helene, desejei uma serenidade lúcida e decretei: não, não se trata de uma terceira guerra mundial – o vírus com todas mazelas sociais que promete acarretar, não vai ser tão devastador. Mas, metáforas de guerra, de hecatombes, de zumbis vagando pelas ruas povoavam o imaginário. Bruno Profeta, nosso colega, desabafou no grupo de WhatsApp da DC: “só rindo pra aguentar esse clima de mistura entre o Ensaio sobre a Cegueira e The Walking Dead…” Sim, o humor poderia ser um precioso aliado.

Minha angústia depressiva se manifestou quando corajosamente decidi sair do meu bunker para resgatar no consultório minhas plantas, alguns livros e o álcool gel que, no movimento de fuga, haviam ficado para trás. O prédio vazio, com apenas dois carros na garagem, me encheu de tristeza, não vi ninguém. Tudo muito unheimlich! Voltando para casa me senti mais aliviada, pois havia vida e uma família reorganizando sua rotina, com novos tempos, novos espaços.

Assim, com a ajuda da análise pessoal, com a confiança de ser neta de Helene, e no compartilhamento com os colegas e amigos, fui acalmando minhas angústias e tecendo uma narrativa para esse acontecimento inédito, chamado por muitos de peste. Outro ponto de apoio fundamental tem sido as supervisões com Sandra Schaffa, onde vemos que não bastam os cuidados sanitários, pois o vírus insidioso também pode vir de dentro. Fortalecida, penso estar trabalhando com muita disposição e desenvoltura no meu novo consultório/casa-online.

Hoje, Alice compareceu a sua segunda sessão nesse novo ambiente. Bastante alegre contou que ontem arriscou fazer um passeio e, na padaria, encontrou um andarilho que já havia visto algumas vezes antes. Ele se vestia de boiadeiro, com chapéu de cowboy e tudo. Ficou intrigada, quis conversar com ele, mas limitou-se a observar. Ele recebeu o pingado e o pão na chapa que pedira ao dono do estabelecimento. É uma figura popular, muito querida. Conversamos sobre a liberdade desse homem de vaguear e viver seu personagem sem constrangimento, numa cidade asfaltada e sem boiadas.  Alice que gosta de escrever e escreve lindamente, pensa deixar o emprego na empresa da família e lançar-se como escritora. Falamos sobre sua liberdade de escrever, de ser como esse andarilho muito bem acolhido pelo seu entorno. Mas, ao contrário dele, verteria suas fantasias em personagens e enredos a serem compartilhados.

Na sequência, Alice falou com apreensão de seus pais que ainda estão nos Estados Unidos, e com dificuldade de retornar ao Brasil. O seguro-saúde deles não cobre pandemias e a volta possível, requer um pernoite em Nova Iorque, hoje, a cidade-epicentro da doença, cujo sistema de saúde ameaça colapsar. A alternativa seria permanecer na cidade onde estão, na casa de uma irmã da igreja – mas aí havia o desconforto de ficar um longo tempo em casa alheia. Bela metáfora, e lhe digo minha percepção do seu impasse, entre ficar abrigada e protegida num lugar que não é seu (a empresa) ou voltar para o território em que se reconhece e se sente confortável: a escrita.  Contudo teria que passar por uma zona de risco, para a qual não havia proteção (cobertura do plano de saúde). Toda essa conversa se deu num contexto de muita soltura e mobilidade, dela e minha, no divã online. Penso que Alice já fez sua escolha. Agora é aguardar.

O que posso afirmar é que eu fiz a minha: sair da zona de conforto, abandonar o terreno dos grandes autores e publicar esse texto muito intimista. Quanto risco !

Antes de encerrar, relato aqui parte da conversa fluida e alegre que ocorreu via WhatsApp por ocasião da interrupção do seminário de Lacan. Havia pedido ao nosso colega e poeta Ricardo Biz, que nos enviasse um poema inspirador para os dias que se seguiriam. E, após algum tempo, ele respondeu: “Aceitei o desafio. Aí vai:”

O Agora é um alambrado

Que aprisiona meu vento,

Um vento nunca rumado,

Sem fim e sem nascimento.

Marilsa Taffarel, nossa querida coordenadora, que habilmente nos conduz por meio dos instigantes labirintos de Lacan, reagiu: “Ricardo, inspiração à prova de coronavírus!” E sem perder o gingado lacaniano acrescentou: “Bons tempos em que corona era uma marca de chuveiro! Lembra?”.  Ymara Victolo, por sua vez, concluiu: “Boa, Ricardo! Não aprisionou a liberdade de criar e pensar!”

Eu termino meu texto, desejando que esse período de recolhimento seja de muita libidinização e vitalidade. As próximas semanas serão muito duras. Precisamos reforçar nossa imunidade com fortes laços coletivos para resistir.  Resistir, não só ao vírus, mas também a toda uma politica ensandecida que não valoriza a vida humana. É hora de convocarmos Eros e realizar um pacto civilizatório, onde prevaleça a justiça e a fraternidade. Agora, juntos, cantemos o refrão: “é preciso estar atento e forte, não temos tempo de temer a morte!”

Quero citar as outras colegas que compõem o precioso grupo de Lacan: Alice Paes de Arruda Barros, Ana Maria Rosenzvaig, Fernanda C. S. Colonnese e Maria da Penha Lanzoni. Quero expressar também minha gratidão para a Ana Maria, que foi generosa interlocutora na realização desse texto. Sem seu incentivo, eu não o teria escrito.

 

* Mariangela O. Kamnitzer Bracco é psicanalista, membro filiado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP).

 



Comentários

One reply on “Quando tudo isso passar, vai precisar de um outro carnaval!”

Marcia disse:

Gostei muito do seu texto. Pela simplicidade franca e pela fala direta que traz a sua experiencia de modo muto generoso.

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