Pedro Malasartes e o duelo com a morte: subjetividade contemporânea e mal-estar na civilização
Home Blog Artigos Pedro Malasartes e o duelo com a morte: subjetividade contemporânea e mal-estar na civilização*Cássia Barreto Bruno
O filme Pedro Malasartes e o Duelo com a Morte, dirigido por Paulo Morelli e estrelado por Jesuíta Barbosa (Pedro Malasartes), Isis Valverde, Julio Andrade e Leandro Hassum, é o primeiro longa-metragem brasileiro com tantos efeitos especiais, realizados na sede da O2 após quase 30 anos de elaboração por parte de Paulo Morelli. É a realização de um sonho e uma jóia na cinematografia brasileira.
Sua característica é utilizar os efeitos especiais de um modo totalmente diferente daquele que estamos acostumados a ver em filmes de ação. Traz uma nova linguagem para tais recursos, com os quais representa o mágico, o belo, o misterioso, o profundo, o reflexivo. O diretor conseguiu juntar reflexão com ação. Criatividade brasileira!
Para comentar o filme escolhi um recorte que leva em conta duas questões fundantes do ser humano: o embate com a factualidade da morte e a astúcia como forma de driblá-la.
No Ocidente, conhecemos esse recurso desde a mitologia grega e é nessa ambientação que o filme se situa.
As três irmãs Moiras, Cloto, Láquesis e Átropos, são as personagens da mitologia grega** responsáveis por fabricar, tecer e cortar o fio da vida dos mortais. Cloto é a que tece o fio da vida, Láquesis é a que distribui entre os homens seus respectivos destinos e Átropos, a que tem o poder de romper o fio da vida com sua tesoura encantada.
Essas três personagens estão representadas no filme em belíssimas imagens, realizadas com efeitos especiais. Os fios da vida, entrelaçados poeticamente, nos enlevam e nos transportam para outro mundo, o mundo dos sonhos. Esse momento misterioso do tecer a vida e o destino das pessoas é vivo, iluminado, intenso.
O rei do Mundo Inferior, Hades, é apresentado com humor fino: um trapalhão que parece até mesmo cansado e tedioso de seu oficio. Seu desejo é se aposentar e trazer da Terra seu afilhado Pedro Malasartes para substituí-lo. Para realizar essa tarefa, Hades recorre a Átropos, a fim de que esta interfira no fio da vida de Pedro. A situação começa a se complicar no momento em que as Moiras não aprovam essa ideia.
Ora, como Pedro Malasartes é mortal e, como registrou Homero***, Hades é o deus mais odiado pelos mortais, claro que ele não gostou nada desse presente de grego. Daí resulta a segunda colocação importante do filme: como driblar a morte, isto é, como se defender de Hades, para além da ajuda das Moiras.
Como Pedro é Malasartes, Mal-as artes, das artes más que aprendeu na vida terrena da roça e colocadas de modo gentil no filme, está posta a questão: Como Pedro vencerá esse duelo? Com astúcia, claro, com as Mal-artes que é o outro lado do ser humano, o lado não politicamente correto.
Essa questão de driblar a morte reverbera em muitas situações no filme, repetindo-se em vários níveis de significação, o que dá mais força ao tema. Vamos falar de dois: de um lado, o inexorável da morte certa está representado no patrão explorador que, como o Todo-Poderoso Hades, persegue Pedro Malasartes.
O filme, nesse momento, se apoia na antropologia de nosso homem rural brasileiro, ou seja, que a esperteza ingênua, aprendida na escola da vida, é seu trunfo. É preciso ser esperto nessa vida.
A saída encontrada pelos humanos foi criar narrativas. Fica claro que a inteligência humana nos provê do mundo da fantasia, essa mágica que remove montanhas, que mata os opressores e que nos devolve o Ser Desejante.
Nos tempos primordiais, por meio da criação de deuses e da ideia de que a vida continua após a morte, foi possível driblar a finitude. Sabemos que a construção das pirâmides para garantir a eternidade resultou em enorme desenvolvimento da matemática, astrologia, arquitetura, calendário, agricultura, escrita.
Na Grécia, o mesmo ocorreu com a narrativa dos mitos. Houve um grande desenvolvimento das artes e da filosofia. O homem começou a interrogar sobre a natureza das coisas, do mundo onde estava inserido.
Isto para dizer que, ao driblar o problema da finitude, o homem criou desenvolvimento e descobriu que, por meio de sua obra, se mantém infinito. É o que Malasartes fará.
A outra questão colocada pelo filme, que envolve a subjetividade do Sujeito, é a relação entre o bem e o mal. Qual a distância entre a astúcia e a maldade?
Vamos encontrar em Homero**** um momento muito especial, em que Ulisses usa de artimanha e esperteza: diante de Polifemo, rei dos Ciclopes, que lhe pergunta seu nome, Ulisses ardilosamente responde: “Meu nome é Ninguém”. Após algumas peripécias, quando fura o olho do Ciclope para defender a si e a seus marinheiros, e após a chegada dos outros ciclopes, estes perguntam a Polifemo “Quem furou seu olho?” “Foi NINGUÉM.” E com isso Ulisses safou-se de ser morto pelos ciclopes.
No duelo com a morte, a artimanha. Foi necessária uma boa dose de criatividade e esperteza para que a humanidade se desenvolvesse, a partir desse problema insolúvel por definição. Já que vou morrer, então crio alternativas e, nesse mesmo ato, crio desenvolvimento e imortalidade.
A estranheza do Reino da Morte é mostrada no filme em infinitas luzes que se movimentam e representam as almas, belíssima alegoria, num balé encantador. O assustador e desconhecido é transformado em Estética, outra artimanha da mente humana.
Será que Pedro Malasartes, ingênuo e astuto ao mesmo tempo, conseguirá enganar a morte? E como a Moiras poderão ajudá-lo? A conferir.
No filme, conteúdo e forma estão imbricados por essa novidade: os efeitos especiais aqui têm a função de exaltar a vida, a ética e os problemas universais que caracterizam o humano. A ideia de situar a trama no imaginário brasileiro caipira, na roça, cria um clima contemporâneo de valorizar a natureza e as raízes do homem brasileiro, e escapa do cientificismo asséptico.
O filme é um elogio à Natureza, à Ética, à Estética. Em última instância, ao Humano.
*Cássia A. Nuevo Barreto Bruno é analista didata e docente da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, International Psycloanalitical Society. Coordenadora do livro Distúrbios Alimentares, Uma colaboração da Psicanálise, ed. Imago, 2011.
** Hesíodo, sec. VIII AC, no livro Teogonia, 217
*** Ilíada IX.158
****Odisséia, livro IX,365