Para ser um adulto feliz, precisamos ser uma criança feliz
Home Blog psicanálise de família Para ser um adulto feliz, precisamos ser uma criança felizA psicanalista e psiquiatra infantil Marie Rose Moro estará no Brasil para a III Jornada da Clínica 0 a 3 – Intervenção nas Relações pais-bebê, que acontece na Sociedade Brasileira de Psicanálise São Paulo nos dias 17 a 18 de março. Na ocasião, ela compartilhará experiências e abordará temas relativos à criação de filhos no século XXI. Em entrevista à SBPSP, ela fala sobre alguns dos temas do encontro, em especial sobre a abordagem transcultural, uma linha de trabalho e pesquisa à qual vem se dedicando e é cada vez mais necessária em um cenário marcado por grandes correntes migratórias e imigratórias.
Quais são os principais desafios culturais para a maternidade e paternidade hoje em dia?
Nós não somos pais, nos tornamos pais! É uma construção complexa de parâmetros coletivos, sistêmicos e intrapsíquicos. Antes, nós tentávamos fazer como nossos pais fizeram conosco nas gerações anteriores. Mas agora isso não é possível. Nós temos que criar nosso próprio jeito de ser pai e mãe. É difícil porque não tem um único modelo a ser seguido. Nós temos que inventar e adaptar nosso self para cada criança, para ouvir as necessidades dele ou dela. Frequentemente nós temos que fazer isso sozinhos, sem outras gerações, sem um grupo. Solidão e dúvidas estão presentes e é por isso que é um desafio grande e extraordinário. Alguns filósofos europeus acham que criar filhos é um desafio enorme no século XXI. É desafiador tanto para a sociedade mas também para a clínica psicológica e para a psicanálise.
Você poderia explicar como os processos de migração e imigração influenciam na criação de filhos nos dias de hoje?
Deixar o lar, a família, os amigos e a língua, perder os aroma, cores e sabores familiares e migrar para outro mundo, geralmente sozinho, são experiências ao mesmo tempo corriqueiras, atemporais e extraordinárias. Migração não é simplesmente a jornada sensata e necessária de muitos Ulysses, mas também tem outras faces: basta ver os rostos atordoados de homens e mulheres chegando nas fronteiras da Europa do oeste africano e barrados no aeroporto, ou tentando cruzar o deserto pelo Mali, Algeria e Marrocos para chegar à costa da Espanha aflitos, explorados e, algumas vezes, mortos. Acontece o mesmo no Brasil. A necessidade vem de fora, mas também de dentro. O viajante moderno chegando na controlada Europa ou na América é mais parecido com o valente Don Quixote lutando contra moinhos de vento e adversidades do que com Ulysses, mesmo quando há um propósito. A jornada continua pela Espanha, Portugal, França e além. O processo é para pessoas e grupos um jeito de encontrar a liberdade, mas também é um trauma e uma dor. Você encontra novos valores e caminhos de viver, mas perde outros que podem ser muito importantes para você.
Estar no exílio é uma situação muito desafiadora para tornar-se mãe ou pai. Em um ambiente que você não conhece tão bem, você pode sentir-se não muito confortável e pode ser uma situação muito insegura sem família e grupos para te ajudar, modelos para te inspirar e por aí vai. E se o bebê chorar, o que fazer? E se o bebê não quiser comer ou dormir? E se o desenvolvimento dele ou dela não for bom o suficiente? E se o bebê não quer comer ou dormir? E se uma doença ou morte acontecer? Nessa situação transcultural, precisamos ajudar os pais a serem pais nessa situação vulnerável. Imaginamos um cenário transcultural para os pais imigrantes.
Há diferenças para homens e mulheres na criação de filhos no século XXI? Quais são elas? Elas mudaram muito nos últimos anos? São igualmente importantes para o desenvolvimento do bebê?
Claro que ainda há muitas diferenças entre homens e mulheres na criação de filhos no século XXI. E as diferenças são boas para os bebês. Eles podem viver experiências e estímulos diferentes. As mães ainda estão mais envolvidas nos cuidados diários e passam mais tempo com os bebês do que os pais, mas podemos observar em partes diferentes do mundo que os papeis dos pais estão mudando. Os pais estão mais perto dos bebês do que antes e querem participar mais das experiências do dia a dia e dividir mais com as mães. Mas os bebês e as crianças precisam de ambos ao redor e interagindo com eles. Eu acho que o bebê também precisa de um grupo para ser apoiado e interagir.
Em que aspectos a relação entre pais e bebês nos primeiros anos de vida pode influenciar o desenvolvimento da personalidade da criança?
Nós sabemos bem que o primeiro ano de vida do bebê é crucial para toda sua vida porque é nele que o bebê precisa construir sua segurança, personalidade e maneira de interagir com o mundo. Muitos grandes psicanalistas e psiquiatras mostraram isso no século XX, como Selma Fraiberg e Daniel Stern, nos Estados Unidos; Serge Lebovici, Michel Soulé e René Diatkine, na França, e Donald Winnicott, no Reino Unido. Os bebês precisam de ajuda em momentos vulneráveis e os pais também. Levando em conta essa vulnerabilidade é uma necessidade hoje que reconheçamos suas necessidades e não deixemos os pais e os bebês sozinhos com o sofrimento deles. Essa também é uma necessidade para o futuro porque esse período tem uma enorme influência para a criança, o adolescente e o adulto que eles serão. Essas intervenções precoces têm grandes resultados no momento, mas também é um investimento para o futuro. Para ser um adulto feliz, precisamos ser um bebê feliz.
Claro que pais imigrantes que pertencem a grupos vulneráveis têm que ser ajudados nesse período muito específico e esse é o objetivo da nossa aproximação transcultural. Pesquisas atuais no campo da psiquiatria transcultural apontam que essa técnica é adequada à prática clínica com pais imigrantes, pois produz resultados terapêuticos que são profundos e duradouros.
Marie Rose Moro é chefe de departamento de medicina transcultural e psicopatologia do adolescente, Maison de Solenn, Maison des adolescents do Hospital Cochin (Paris, França); criou e é a responsável pelas consultas transculturais destinadas a bebês, crianças, adolescentes e suas famílias, Hospital Avicenne (Bobigny) e Cochin (Paris); é chefe de fila da psiquiatria transcultural na Europa; diretora da revista transcultural, L’autre. Clinicas, Culturas e Sociedades; presidente da Associação Internacional de Etnopsiquiatria (AIEP), e professora convidada para conferências em vários países do mundo.
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