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O desejo segundo Jacques Lacan

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* Marilsa Taffarel

Lacan, em seu seminário proferido em 1964, declara: “Não há meio de me seguir sem passar por meus significantes…” (pg. 206). Para compreender o que é o desejo, precisaremos considerar alguns “significantes” de eleição para o autor: demanda, gozo, Outro, alienação, separação, fantasia fundamental, objeto a… Nem sempre questionamos o emprego da palavra desejo que a psicanálise, Freud e, posteriormente, Lacan, tratou de definir, circunscrever e relacionar com outras formulações conceituais. Ambos consideram o desejo um elemento central, nodal do ser humano.

Tomamos como sinônimo de desejo um querer muito forte – a insistência da criança, pequena ainda, que foi proibida de terminar o desenho de um ursinho na parede da sala e que, pé ante pé, à noite, vai completá-lo. Como poderia deixar o ursinho sem suas orelhinhas?  Ela desejava muito tal coisa. Sem dúvida, um desejo está ali presente porque houve a interdição. Um desejo pode ser suscitado pela proibição.

Em Freud, o desejo, que é inconsciente, é designado pelo vocábulo alemão Wunsch, cuja tradução é anelo, aspiração. O desejo não se mostra claramente e, como sabemos, tudo que é cifrado, ambíguo ou obscuro exige interpretação. E é essa a condição de sua manifestação no sonho, concebido por Freud como realização de desejos, nos lapsos, nos sintomas, na fantasia de cada um.

Para Freud, o desejo é um movimento em direção à marca psíquica deixada pela vivência de satisfação primeira que acalmou uma necessidade, como a fome, no bebê. Através dessa inscrição mnêmica poderá então a criança reeditar a satisfação de forma alucinatória, nessa pouco duradoura autonomia que a alucinação fornece. Seria essa a realização do desejo. Contudo, a tensão da necessidade que persiste conduz à ação de esperneio ou choro. A necessidade se impõe e a criança precisa de um adulto capaz da ação específica de dar leite, de cuidar.

Lacan escolhe outro vocábulo alemão para designar o desejo: Begierde, que, segundo o dicionário alemão-português, significa cobiça, anseio, desejo veemente.  Como costuma ser apontado, essa escolha marca suas influências (Hegel) para além de Freud e marca sua contribuição quanto a esse crucial conceito para o pensamento psicanalítico e para a prática analítica. Não iremos tratar disso nesse momento.

O desejo e a linguagem

Lacan – tendo o propósito de, finalmente, dar fundamentos sólidos, cientificamente, para a psicanalise, propósito de toda sua vida – apoia-se na linguística de F. Saussure.  A linguagem passa a ser fundamental em sua reconstrução do inconsciente, do recalcamento, do desejo.

Lacan irá articular o desejo com a linguagem. O adulto que cuida, que exerce a função materna, fala. Sua importância se destaca sobretudo por ser o transmissor do grande mediador simbólico que é a linguagem, a qual possibilita ao bebê o acesso a nosso mundo simbólico. A criança irá registrar suas primeiras experiências através dos elementos linguísticos – significantes – emitidos pela mãe. Lacan chama atenção para o fato de que, de forma inevitável, a criança irá se alienar nesses significantes. É essa a única maneira de entrar na linguagem.

Lacan irá marcar, desdobrar, esquadrinhar a função do adulto indispensável para a passagem ao mundo intersubjetivo da linguagem. Mundo da incompletude, da falta, do desejo e de sua alienação.

A mãe tanto interpreta os movimentos e expressões da criança quando lhe oferece alimento e irá entender como mensagens as manifestações da satisfação da necessidade. É o desejo da mãe que assim se manifesta. Ela, ao falar com o bebê, irá inserir uma satisfação de espécie diferente da satisfação da necessidade corporal, uma satisfação que prolonga a corporal. Esse acréscimo de satisfação que a criança não demandou, ela a recebeu sem pedir, sem usar a linguagem. Lacan chama essa satisfação de gozo, um gozo primordial.

Contudo, é através da interpretação, da atribuição de sentido às manifestações de apaziguamento corporal da criança que essa vai deixando o âmbito da necessidade e entrando para o mundo da linguagem, o mundo simbólico. O espernear e chorar quando a tensão se reestabelece, que não tinham inicialmente um alvo, passam a se dirigir ao Outro.

A criança demanda ao Outro não só a satisfação da necessidade, ela demanda o plus que recebeu da mãe satisfeita com a satisfação da criança. Aquele primeiro plus que recebeu sem demandar não irá se repetir após a criança aprender a se manifestar, a fazer apelos à mãe através de quaisquer elementos da linguagem.

O desejo deve ser discernido da necessidade e também da demanda. Ele está, para o autor, entre elas e tem uma relação intrínseca com a incompletude, com a falta. Com um apelo, um pedido que esconde e indica uma demanda, faz-se a tentativa de alcançar um preenchimento que, nessa concepção, está sempre além.

Referindo-se ao sonho da filha de Freud, Anna, sonhado quando essa era ainda bem pequena, Lacan diz que nele se manifesta o desejo do impossível. Anna teria comido muito de suas frutas e doces preferidos no dia anterior. Passou mal, vomitou.  Então, só poderia ingerir alimentos leves. À noite tem um sonho, exemplo para Freud de sonho infantil, simples. Diz ela no sonho algo como: framboesas, morangos bem grandes, flan: delicias que adora. Para Lacan, que não considera o sonho simples, esses objetos mencionados já são objetos transcendentes, já entraram na ordem simbólica. São cerejas e flans, mas são, sobretudo, aquilo que não posso ter.

Uma outra interpretação desse sonho, feita por Slavoj Zizek, em seu livro Como ler Lacan, é a de que o desejo da pequena Ana era de satisfazer o desejo de seus pais de ter nela uma menina que se deliciasse com essas guloseimas que eles lhe ofereciam. Dessa maneira, Zizek introduz a questão essencial para Lacan concernente ao desejo: qual é o desejo dos que me cercam para que eu possa ser o objeto desse desejo? Ou para que possa ser o desejo desse desejo?

Lacan expressa esse anseio de se posicionar como objeto do desejo do Outro (na grafia de Lacan a letra maiúscula indica a decalagem de posição, de pertinência ao mundo social de quem desempenha a função materna em relação à criança) em seu seminário sobre os quatro

conceitos fundamentais da psicanalise, dizendo: “O desejo do homem é o desejo do Outro”. (pg.223)

Nessa primeira relação com quem desempenha a função materna, outro elemento é de fundamental importância: o Outro precisa ser desejante, a criança precisa experimentar o Outro como desejante, não completo ou como diz Lacan o Outro precisa estar barrado. O que verdadeiramente a mãe deseja permanecerá enigmático para a criança no processo de instauração de sua posição como sujeito.

O desejo é um fluir metonímico. O que quer dizer isso? Ele estará – dentro dessa concepção – sempre se deslocando em direção ao que aparenta ser o objeto perdido se não estiver, como soe acontecer, aprisionado numa vã tentativa de obturar a falta constitutiva. Essa é uma das maneiras de entendermos porque Lacan diz que a ordem simbólica é intrinsicamente decepcionante.

O objeto do desejo, designado como objeto a, é um objeto perdido. O que o caracteriza e distingue de outras concepções de objeto na psicanalise é exatamente não ter qualquer objetividade, existir independentemente das percepções do sujeito.

O que suscita meu desejo em um objeto do mundo ou uma pessoa? Algo indecifrável. Um brilho, uma textura, um som, um significante. Esses são, para Lacan, faces simbólicas ou imaginarias do objeto a. Aparências. Como diz Lacan de forma brilhante, “(…) o que o sujeito reencontra não é o que anima seu movimento de tornar a achar.” (pg.207).  Além de ser o alvo do desejo, o objeto a é concebido como um concentrado de gozo que causa o desejo.

O desejo e a função do pai        

Em um primeiro tempo de sua existência, a criança tenta se colocar como o objeto do desejo da mãe, como aquele que preenche a mãe, isto é, como o falo. Contudo, o que a mãe, de fato, deseja permanece enigmático para a criança.

A ultrapassagem dessa relação primeira é condição para que a criança deixe de ser objeto do desejo da mãe e passe a ser sujeito do desejo.  É pela intervenção da função do pai através da linguagem que a sinaliza que esse corte se dá. O registro da proibição da relação incestuosa com a mãe, registro da lei que a proíbe, é considerado um evento psíquico estruturante e fundamental para a criança. Em terminologia lacaniana expressa-se como simbolização primordial da Lei (de interdição do incesto). Essa interdição recalca, torna inacessível o significante fálico, cujo sentido enigmático guiará e determinará sua busca infinda.

Na analise, o desejo é o que gera a demanda que se expressa em apelos ao analista, é o que sustenta a transferência. O analisando busca a análise por acreditar que ela o levará ao desejo inconsciente. Tal coisa é, muitas vezes, expressa pela frase que ouvimos direta ou indiretamente de nossos analisandos “quero me encontrar”.

Para Lacan, o princípio que rege uma análise é a liberação do desejo em relação à sua alienação. Talvez esse propósito de uma análise, essa espécie de consigna, tenha transbordado mais rapidamente do que outras para universos psicanalíticos vários e para além do campo psicanalítico. Bem recebida por aqueles que esperavam da psicanalise uma teoria do sujeito como contendo um elemento intrínseco de caráter libertário.  Mal compreendida por muitos que viam nessa espécie de consigna uma licença para o descompromisso com o contrato civilizatório. Portanto, libertar o desejo alienado em formas imaginárias, nas repetições da demanda e contido na fantasia fundamental é o fito de uma análise.

A interrogação que resta é: podemos libertar o desejo também da função paterna, do Édipo? Pergunta que interessa cada vez mais a uma sociedade que põe em questão o patriarcado, que põe em evidência novas formas de investimentos libidinais – investimentos ditos rizomáticos ou horizontais e não verticais e hierarquizantes -, e, como consequência, uma sociedade que se amedronta com tais transformações.

O Édipo, ou seja, a função paterna na produção de um sujeito desejante, para Lacan, é a condição da forma normal do desejo. Contudo, Jacques-Alan-Miller, em uma entrevista para a Opção Lacaniana (ano 4, n.12) fala do desejo ligado à interdição do pai como um desejo “normalizado”. A ênfase na função do pai seria um legado de Freud em relação ao qual Lacan operaria um distanciamento. Não poderia deixar de levar em conta, justamente, o declínio da sociedade patriarcal com seus padrões de investimentos libidinais.

Marilsa Taffarel é membro efetivo e professora da SBPSP, mestre em filosofia da psicanálise pela PUC-SP, doutora pelo núcleo de psicanálise da PUC-SP e coautora do livro “Isaias Melsohn, a psicanálise e a vida”.



Comentários

2 replies on “O desejo segundo Jacques Lacan”

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Camila Salles Gonçalves disse:

Sobre “O DESEJO SEGUNDO LACAN por Marilsa Taffarel.
A abertura, ou seja, os dois primeiros parágrafos, como eu já tinha ouvido dizer, não são inteligíveis de imediato. Mas, para mim, são instigantes. Colocam a questão e anunciam o modo de abordagem. O leitor já é informado de que vai se haver com significantes, que são primeiro listados. A partir daí, o termo “desejo” é apresentado no contexto freudiano com clareza e somos conduzidos à especificidade da conceituação lacaniana e podemos perceber a importância decisiva da linguagem na perspectiva lacaniana. No exemplo da página 8, aprende-se, de forma suave, que significante é “elemento linguístico” e os esclarecimentos que se seguem são facilitados. Na sequência, a autora, ao mesmo tempo em que trata do “desejo”, vai explicando os significantes listados no início. A citação de Zizekc, a meu ver, é muito bem escolhida. Destaco também a lição sobre o “a”, que considero uma das mais difíceis para quem a apresenta. Marilsa, por assim dizer, instrumenta o leitor para que ele participe das questões, de suma importância, que propõe a respeito da clínica do social.
Acho que dá para participarmos de um debate, no qual, quase sem sentir, participamos “em lacanês”. Texto invejável. Parabéns e obrigada.

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