Border: estranheza e compaixão
Home Blog Artigos Border: estranheza e compaixão*Luciana Saddi
O filme implacavelmente expõe o que é o medonho, o terror. Quem atua no roubo e na mutilação de bebês e crianças? Homens ou monstros? Seriam o ódio e o rancor dos que foram excluídos da sociedade e da humanidade, dos que sofreram impiedosamente a falta de respeito, bem como dos que perderam o amor e o reconhecimento, e daqueles que foram e são tratados sem nenhuma compaixão, explorados até a última gota de sangue que engendram o mal? Ou simplesmente, sem motivo algum, a pulsão de destruição surge e toma conta dos homens. Seja como for, por sofrimento e/ou por gosto, não nos enganemos, pois ambos anunciam com imenso gozo destrutivo o fim do mundo, o eterno fim da nossa civilização. Border, a fronteira entre vida e morte, entre amor e destruição, entre bem e mal. O embrião do fim do mundo foi anunciado, não sabemos como exatamente identificar de onde surge o aniquilamento e como se propaga, mas não podemos negá-lo. É preciso investigar, conhecer o mal e lutar até dizimá-lo.
A protagonista Tina trabalha como policial nas docas de Estocolmo. É guarda de fronteira, tem como atribuição fiscalizar bagagens e passageiros. Sua aparência é estranha, principalmente pelos traços grosseiros, que muitas vezes torna indistinguível a diferenciação entre os gêneros. Atingida por um raio na infância – reza a lenda familiar –, desenvolveu uma espécie de sexto sentido, que a torna capaz de “ler as pessoas” e detectar mentiras apenas pelo olhar e pelo olfato – o que sempre representa vantagem na sua profissão. Suas suspeitas se mostram invariavelmente corretas após a investigação. Border é o termo que usamos para quem vive na fronteira. Border é a própria fronteira.
Até que Tina identifica um criminoso em potencial, mas não consegue achar provas para justificar sua intuição e passa a questionar seu dom, ao mesmo tempo em que fica obcecada pelo suspeito. Ela precisa descobrir qual o segredo de Vore. Inexplicavelmente, ambos possuem características fisionômicas semelhantes e que causam estranheza. A câmera, próxima dos personagens, percorre ângulos incomuns e revela, lentamente, aspectos um pouco animalescos dos protagonistas, que lembram os extintos neandertais.
Dolorosa caminhada
A investigação de Tina resulta em uma jornada, um caminho de descoberta de si mesma, autoconhecimento, e também de Vore. Dolorosa e curiosa caminhada rumo a segredos e verdades – a exemplo do trabalho analítico –, na qual a policial se fortalece no processo de investigação e, ao mesmo tempo, se torna mais empática aos sofrimentos humanos. No interior dessa trama há ainda outra em curso, paralela, da qual Tina é peça fundamental. Trata-se de desvendar uma possível quadrilha de vendedores e/ou abusadores sexuais de crianças e bebês. O prodigioso faro da guarda de fronteiras é recurso fundamental para apanhar os criminosos e descobrir como os crimes são realizados.
Border é um filme que une conteúdo e forma de maneira exemplar. Somos apresentados a personagens estranhos, quase que deformados, com habilidades animalescas, envolvidos em uma trama de investigação e suspense. Aparentemente, o único prazer de Tina é “farejar” os maus elementos e os segredos que passam pela fiscalização de passageiros e bagagens. Tina parece ser, em muitos momentos, fria, distante e indiferente. Do tipo que cumpre suas obrigações com rigor, mas nada sente. Poderíamos dizer dela o mesmo que Freud disse, há mais de um século, das histéricas, “belas indiferentes”. Entretanto, beleza não é a palavra para designar as rudes feições da policial.
No início da trama somos apresentados à sua vida doméstica. Um marido autocentrado, preocupado apenas com seus cachorros e prazeres. A relação entre eles é de falsa intimidade. Nenhuma atração ou sexo. É como se Tina tivesse desistido de querer, desejar, amar, e estivesse conformada com as agressões e solidão a dois. A casa malcuidada, quase suja, precária, transmite sensação incômoda de abandono e falta de amor. É, por sinal, a mesma sensação que temos quando a câmera a escrutina: abandono. Além da feiura evidente, há estranheza. Faltam peças. Algo não se encaixa. Sobra mistério. Há também o pai, vivendo num asilo, de quem ela cuida com carinho ainda que com certa formalidade. Ao longo do filme descobrimos que ela foi adotada. E Tina irá também buscar a verdade sobre sua adoção. A mentira sobre seu nascimento e adoção nunca havia sido questionada.
Potencial de prazer
Border narra o percurso que vai do conformismo desafetado à autonomia e responsabilidade pela própria vida. A transformação da guarda de fronteiras se dá na relação com Vore. Desse encontro sexual e amoroso – do qual ela continua intrigada – surgem amor-próprio, autoconfiança e um saudável questionamento sobre sua origem familiar. Erotismo e paladar se desenvolvem lado a lado. Um mundo novo se revela. Tina parece estar feliz e se sentir livre pela primeira vez. Ela se delicia com as texturas do corpo, com as potencialidades de prazer que a vida erótica proporciona, com a descoberta de novos alimentos e com a integração à natureza, como se voltasse ao habitat natural. Tina desabrocha, apodera-se de seu desejo e dispensa o antigo relacionamento.
O encontro amoroso com um novo parceiro é, antes, um encontro com si mesma. Desse encontro surge o descobrimento de suas capacidades, independência e autonomia. A apropriação erótica do corpo a leva a uma posição mais ativa no mundo. O repertório pessoal da personagem se expande. A repressão afrouxada provoca novos questionamentos. O filme pode ser visto como metáfora do trabalho psicanalítico. Quanto mais nos conhecemos, mais fortes e livres nos tornamos, e também mais capazes de incomodar e de questionar o status quo. Esse é o movimento de Tina que o diretor nos convida a acompanhar de perto com deslumbre e emoção.
Observa-se, também, o movimento natural dos amantes em direção ao isolamento, decorrente da fantasia universal dos apaixonados que subjaz na crença infantil de serem feitos de matéria especial, diferentes dos demais da espécie humana. Feitos um para o outro, somente. A fusão os torna especiais. Os amantes vivem nas bordas da realidade, são únicos. Tal estado de apaixonamento é descrito por Freud ao tratar do narcisismo. Border, qual a fronteira do amor? Quem amamos quando amamos alguém? O amor ao outro é também amor a si mesmo. Border, na paixão, o eu e o outro se confundem.
Sustentar as próprias verdades, ter voz e autonomia, percorrer caminho paralelo com a investigação edípica: Quem eu sou? De onde vim? Para onde vou? Que família é essa? Pertenço ou não pertenço ao meu grupo? Perguntas que crianças e adultos saudáveis se fazem durante a existência sem ter necessariamente respostas. Tina foi adotada e quer respostas sobre sua origem, sobre as marcas em seu corpo e sobre as diferenças entre ela e sua família, diferenças que antes passavam despercebidas pois eram negadas.
A curiosidade da policial também se dirige ao amante e à estranheza excitante que ele causa. Ele tem muito a ensinar e algo a dizer.
Cegueira pulsional
Haverá uma revelação inquietante e assustadora no final do filme. O mistério é a emoção que impregna Border do começo ao fim. A presença de Vore potencializa o mistério. Homem feio, transgressor, que vive de acordo com suas próprias regras, muito diferente de Tina. E que a leva às perguntas fundamentais nos relacionamentos: Quem é você? O que quer de mim? São os eternos questionamentos, ainda que inconscientes, sobre nossos primeiros vínculos de amor. Procuramos desvendar o enigma de nossos pais ou o pensamento sucumbe. Caso a capacidade de pensar e perguntar não seja solapada, o impulso para o conhecimento, a curiosidade da criança pequena sobre seus pais e sobre a sexualidade poderão se transferir para amplos aspectos de sua vida. Ou não, a depender dos processos de familiarização e da dor originada em tais processos.
O processo de familiarização, de aculturação, a que todos somos submetidos desde o nascimento é sempre estranho, violento e bizarro. Implica em cegueira, renúncia e restrição às forças pulsionais. De fato, nascemos num “hospício” e aprendemos suas regras. Tais regras se assemelham a muitas normas culturais que nos rodeiam. Para uma boa parte dos humanos o mundo parece como dado e não pode ser questionado, é assim e pronto. Alguns percebem o “hospício dos outros”. Sempre é mais fácil ver a loucura das regras familiares e culturais fora de nós. Dessa forma, Tina sofreu, como todos nós, uma espécie de “lavagem cerebral” até se tornar mulher adulta, filha carinhosa e esposa submissa. Tal “lavagem”, irremediavelmente, todos sofremos, desde o nascimento, pois em nosso desamparo inicial dependemos inteiramente do outro para nos apresentar à vida e ao mundo. Border, na fronteira entre instinto animal e pulsão. Entre ser e não ser.
Em relação à forma, o filme rompe com os tradicionais gêneros cinematográficos por reunir quase todos os gêneros ao mesmo tempo. Drama, tragédia, comédia, suspense, policial, terror, jornada, autoconhecimento, erotismo e sexualidade. São infinitas as possibilidades de leitura, de camadas de sentido sobrepostas, compostas, condensadas e justapostas que o jovem diretor, Ali Abassi, é capaz de produzir em quase todas as cenas. Além da permanente sensação de estranhamento ao transitar entre a fantasia, o realismo fantástico e o realismo sem se fixar em uma categoria. Border, na fronteira dos vários gêneros consagrados pelo cinema.
Categoria inqualificável
Já assistimos a filmes sobre monstros, sobre frankensteins, vampiros, zumbis, king kongs ou até mesmo filmes com heróis mais disformes e indefesos como Homem Elefante ou O Corcunda de Notre Dame. Border, embora traga algo de monstruoso e incômodo pela feiura e esquisitice de seus personagens, vai além. Os personagens principais são inqualificáveis, não há categoria para eles, assim como não há categoria para o próprio filme. Não fica difícil estender o mesmo raciocínio para todos nós. Basta olhar de perto, da forma como a câmera faz, como os psicanalistas fazem diariamente em seus consultórios, para saber que cada ser humano é uma categoria inqualificável, insubstituível, única, singular. Somos mistura, sempre estranha aos outros, de tantas qualidades, características, histórias, dores, detalhes e em constante metamorfose. E Abassi insiste em nos mostrar de perto tais características e suas transformações. Como se apelasse ao público pelo reconhecimento de humanidade naquilo que é quase não humano. E, dessa maneira, provoca um jogo sagaz de identificação e desidentificação no espectador. Viver e ser diferente da norma. Border subverte padrões de comportamento, gênero, biologia e sexualidade em cenas que, algumas vezes, até causam certa aversão.
Ao assistir Border nos permitimos a feiura, vestimos a pele do bizarro e experimentamos como vivem os que sofrem preconceitos em nossa sociedade: homossexuais, obesos, transgêneros, miseráveis, negros, orientais, hermafroditas, refugiados – todos aqueles que são diariamente excluídos e aviltados, para quem não há compaixão. O filme também nos desperta para inquietante questionamento sobre fronteiras. Qual a distância, se é que existe, entre humano e animal? Entre feroz e terno? Homem e mulher? Fronteiras móveis questionam padrões. Border expõe muitas fronteiras pouco delimitadas. O filme nos leva a perceber que os supostos monstros falam, principalmente, sobre nós, os humanos.
Tina: eu não vejo razão no mal.
Vore: então, você quer ser humana?
Tina: eu não quero machucar ninguém. É humano pensar assim?
Essa espécie em cuja fragilidade e ignomínia Border lança luz. Como se perguntasse, implacavelmente, e com argumentos, o que é o belo? O que é humano? Como e onde encontrar o amor e, afinal, é possível o amor permanecer, resistir, mesmo com tanto sofrimento e brutalidade? A personagem Tina, tem a resposta, e é redentora. Não será possível julgá-la pela aparência, o amor é sua maior beleza, como é também o esforço que a humanidade faz, diariamente, para perpetuar a vida.
Autoacusações
No ensaio O Mal-estar na Civilização, Freud (1929) afirmava que o progresso civilizatório e tecnológico exigia alto preço do indivíduo. Cobrava renunciar à sexualidade e, principalmente, à agressividade – como esforço necessário ao desenvolvimento civilizador. Um dos caminhos apontados para dar continuidade à civilização seria formado pela internalização da força agressiva, voltada para dentro, que agrediria o eu, em forma de autoacusações inconscientes, no lugar de se lançar contra o outro, para fora. O preço a pagar, na tentativa de evitar a destruição dos homens e da sociedade, era se tornar refém do sentimento de culpa inconsciente e, portanto, de constante mal-estar, ambos impeditivos da fruição da felicidade.
Freud deixou para os futuros psicanalistas o questionamento relativo aos sofrimentos que surgiriam no futuro pelo fato de a civilização – em constante transformação – impor de maneira permanente ao homem múltiplas coerções pulsionais, estilos de vida e diferentes formas de pensar e adoecer. Embora, ao destacar a pulsão de morte, força destruidora por excelência, o psicanalista tenha se tornado um tanto cético e desalentado. Afinal, civilizações nascem e morrem, em geral, por conta própria, por medidas, ações e escolhas que as mesmas fazem – nem sempre um inimigo é a causa da destruição.
O mal-estar, o sofrimento e a destruição estão presentes em todas as formas de cultura, não apenas na civilização judaico-cristã. Em cada cultura adquirem características peculiares. Na nossa, em função de sua impermanência e movimentação, o mal-estar costuma ser acompanhado por questionamentos. A maior qualidade de nossa cultura é a liberdade de poder questionar seus limites, de interrogar os processos que nos fazem ser como somos, a ponto de expor, até os últimos limites, a construção, o absurdo e a farsa que é ser humano.
Border, o filme, ao entrelaçar expressões culturais, sofrimentos individuais, manifestações sociais e produções artísticas, responde de quais maneiras o mal-estar, a força de destruição e o sofrimento estão presentes no homem, nas artes e na sociedade neste início de século XXI. A compaixão pode atravessar as fronteiras e, quem sabe, possibilitar a permanência da nossa civilização. No momento, desconhecemos o desfecho.
Border. Título original: Gräns. Direção: Ali Abassi. Ano de produção: 2018. Países: Suécia/Dinamarca. Duração: 100 min.
*Luciana Saddi é escritora e psicanalista, membro efetivo, docente e diretora de Cultura e Comunidade da SBPSP. Mestre em Psicologia Clínica, coordenadora do Ciclo de Cinema e Psicanálise: “Mal-estar na Civilização e Sofrimentos Contemporâneos”, realizado pelo Museu da Imagem e do Som (MIS) com apoio da Folha de S.Paulo.
** Uma versão deste artigo foi publicado pela revista Psique (número 170).
2 replies on “Border: estranheza e compaixão”
É um ótimo filme ao qual eu preciso voltar. Os últimos meses atropelaram tanto o espírito que tudo anda ainda mais fragmentado. Volto ao filme e, depois, volto ao texto.
Obrigada!