CRACOLÂNDIA – DIVERSÃO OU REFÚGIO?
Home Blog Artigos CRACOLÂNDIA – DIVERSÃO OU REFÚGIO?A discussão em torno do tema cracolândia tem ganhado visibilidade nos últimos dias por conta das ações realizadas pela Prefeitura de São Paulo no local, notoriamente conhecido por reunir usuários e traficantes que consomem e vendem drogas a céu aberto. Com o tema em voga, acabam vindo à tona histórias diversas de pessoas que vivem no local e, muitas vezes, fogem do estereótipo do craqueiro . Mas o que leva alguém a chegar ao ponto de se abrigar em um ambiente como o da cracolândia? Diversão? Prazer?
Confira abaixo o artigo da psicanalista Maria de Lurdes Zemel sobre o tema:
A CRACOLÂNDIA SERIA UM LUGAR DE DIVERSÃO OU UM REFÚGIO?
Ao fazer a divisão da palavra crack-lândia podemos associá-la à Disney-lândia – o que leva a pensar sobre o uso de droga estar associado somente ao prazer. Decorre daí a certeza que esse é um lugar que abriga pessoas que vivem só do prazer. Pessoas irresponsáveis, que não querem trabalhar, não respeitam leis, não sabem viver em grupos sociais, etc.
Sim, todos buscamos a droga para obter prazer e é isso que ela nos oferece. Sabemos isso usando adequadamente qualquer droga. A questão passa a se complicar quando a relação com a droga se inverte, isto é: quando ela dirige a relação, como se fosse um tirano a nos dominar. Isso é assim também com o crack.
O crack é a cocaína inalada. Tem um efeito rápido, vai direto à corrente sanguínea por inalação. Seu efeito também passa rápido. Rapidamente causa tolerância, síndrome de abstinência e dependência.
O usuário de crack de terno e gravata, aquele que vem ao nosso consultório, usa crack eventualmente e não frequenta a “cracolândia”. Ele é uma pessoa diferente do “craqueiro” que está lá na “cracolândia” em andrajos ou escondido por um cobertor. No entanto, ambos são seres humanos e merecem respeito e compreensão.
O frequentador da “cracolândia” está submetido à lei social do tráfico, lei rígida e que demanda obediência servil. O tráfico tem palavra: é cumprir ou morrer. É possível que ele obedeça a esse tipo de lei por não ter tido interdição paterna, por ter se perdido dentro da família e por estar num grupo social sem lei, onde nada do que é dito é cumprido.
O frequentador da “cracolândia” tem urgência – fuma uma pedra atrás da outra. Procura na latinha uma pouco de calor na boca, mesmo que a queime. Beija a boca de qualquer um ou aceita qualquer sexo somente para sentir um corpo junto ao dele, um corpo sem nojo, igual ao dele. Envolve-se num cobertor para sentir um limite na própria pele, para se sentir único no meio da multidão de semelhantes. Cada um tem seu cobertor. O cobertor é sagrado; assim como nosso corpo é sagrado para nós e nossa mente é única.
O cobertor esconde muitas histórias. Muitas misérias e muitas dores não poderiam ser suportadas sem a presença dele. Abortos, estupros, surras, mortes, abandonos, violências de toda qualidade. Estamos do lado de fora do cobertor, não sabemos dos sofrimentos daqueles que ali se escondem.
Um bebê substitui a ausência de sua mãe por um “paninho”. Um “craqueiro” precisa de um cobertor para suportar a ausência de vida que existe em sua própria vida. A morte se faz constantemente presente; a morte é fria.
O cobertor nos protege de ver tanta tristeza. Talvez fosse insuportável para nós enxergar o que o cobertor encobre. Talvez seja insuportável para o craqueiro também.
O craqueiro precisa da “cracolândia” para se refugiar e se proteger de nós, que temos medo da precariedade psíquica escancarada por ele.
*Maria de Lurdes de S. Zemel é coordenadora do Grupo de Prevenção ao Uso Indevido de Drogas do Setor de Parcerias e Convênios da Diretoria de Atendimento a Comunidade da SBPSP
*Revisão de Luciana Saddi – membro da SBPSP