Conversando com Shakespeare e Freud
Home Blog Artigos Conversando com Shakespeare e Freud* Heloisa Helena Sitrângulo Ditolvo
Você conhece Shakespeare? E Freud? Em diferentes instâncias, todos conhecemos um pouco. Em poucas linhas, selecionei apenas alguns aspectos, em função da importância e grandeza desses dois autores. Um é poeta e dramaturgo inglês, o outro, neurologista e psiquiatra austríaco, criador da psicanálise, o pai da psicanálise, como é chamado. Posso assegurar que tão logo qualquer um de nós penetre no universo de suas obras, não sairá mais. Faço aqui um convite e um alerta: somos aos poucos enredados pelo prazer e curiosidade cada vez maior, que ambas as produções vão disparando em nós leitores, estudantes, espectadores.
São fascinantes tanto as peças de Shakespeare, como a teoria psicanalítica que Freud em 40 anos construiu e nos presenteou.
É fácil compreender porque Shakespeare (1564-1616) é tão atual e frequentemente encenado no mundo inteiro. Basta iniciar a leitura. Assim como muitos dos conceitos trazidos por Freud (1856-1939), entraram em nosso vocabulário e definitivamente fazem parte da nossa cultura.
Apenas três peças são originalmente escritas por Shakespeare: Sonho de Uma Noite de Verão (1595), As Alegres Comadres de Windsor (1597-8) e A Tempestade (1611). Todas as outras peças foram retiradas e transformadas a partir de obras já existentes, de diversos autores, onde o Bardo imprime profundidade e dá a elas nova finalização e beleza.
Quando os teatros ingleses foram fechados por dez anos, em função do alastramento da peste negra que dizimou quase um terço da população da Europa, Shakespeare passou a escrever os famosos sonetos. Foram 154 sonetos, em sua maioria, de amor.
Podemos encontrar nossa originalidade nas produções artísticas, assim como podemos encontrar novas formas de expressão e criação, diante do imprevisível, do inusitado. Quero me referir às transformações que sofremos a partir das experiências pelas quais passamos e da nossa própria capacidade exploratória e resiliente.
Freud identificou o processo no qual o homem transforma os estímulos sensoriais em qualidades psíquicas. Shakespeare transformou narrativas ficcionais em arte, por meio de sua imaginação criativa e de seu grande domínio da retórica.
Shakespeare subverte a condição do homem medieval, sujeito às leis e normas da Igreja e reduzido definitivamente a pertencer, ou a ser do bem ou do mal. Ele quebra o maniqueísmo religioso e em suas peças todos os personagens podem ser bons e maus. Surge a possibilidade da reparação e principalmente da interioridade, quando o indivíduo passa a ser constituído por todas as formas e intensidades do sentir, do fantasiar, podendo haver um lugar legítimo para o desejo. Harold Bloom em seu livro Shakespeare: a invenção do humano diz que “as peças nos leem de maneira definitiva”. E vai além, ao afirmar que “os personagens não se revelam, mas se desenvolvem, e o fazem porque têm a capacidade de se auto recriarem”.
Freud ao assegurar que somos regidos por impulsos inconscientes e não somente por princípios racionais, propõe uma nova ordem para o existir. Ele diz que o “Ego não é rei em sua própria casa”, avisa que somos neuróticos inconformados com nossas limitações e principalmente com a finitude. É muito fácil nos reconhecermos nessas condições, não é? Basta olharmos para nossos medos, desamparos, angústias. O susto frente ao desconhecido.
Humberto Eco, numa visão pancalista do mundo (a visão pancalista entende que tudo no mundo é belo) afirma que “A beleza que é disseminada por Deus é a causa da harmonia e do esplendor de todas as coisas”.
E nós, como ficamos diante dos ideais inatingíveis?
Freud, buscou em Ricardo III, o exemplo da recusa narcísica diante do “feio, imperfeito” para ilustrar seu texto As exceções. Ele certamente, se utilizou da produção shakespeariana para compor sua teoria psicanalítica. Hamlet faz parte da A Interpretação dos sonhos. E em diversos textos se valeu de Otelo, Rei Lear, Macbeth, O mercador de Veneza, entre outras.
Assim como numa experiência analítica, Shakespeare nos coloca diante de nós mesmos, ficamos expostos, através de suas personagens aos mais sublimes e terríveis sentimentos. Aos poucos reconhecemos do que somos feitos. É surpreendente, angustiante, desafiador, apaixonante.
Cada vez mais encurtamos o tempo necessário para vivermos as experiências, senti-las e processá-las. Não há espaço de elaboração, os registros se sobrepõem e quando olhamos para trás, lá se foram as memórias que poderiam ter sido guardadas. Como um balão que escapa da mão, sobe, sobe e desaparece. Não há mais balão. Sentimento de vazio.
A psicanálise oferece, no encontro do analista e analisando, a criação de um campo capaz de favorecer o conhecimento de aspectos reprimidos, obscuros ou ameaçadores, lidar com nossas tragédias internas e tecer uma nova configuração psíquica, onde o indivíduo possa ser mais senhor de seu próprio destino.
Na era medieval, o poder era exercido pelo indivíduo, seguindo uma posição hierárquica e era autorizado político e socialmente, mesmo que ele não tivesse capacidade para esse lugar.
Quando o homem se vê poderoso, outorga-se direitos correspondentes ao cargo que ocupa, sem se dar conta que os cargos podem se esvair e então, o que resta dessa criatura? Despido de todos os símbolos de poder, o ser humano é essencialmente regido por pulsionalidade, amor e ódio, Eros e Tânatos.
Poder, gratidão, inveja, ciúme, ambição, lealdade, traição, amor, ódio, vingança, redenção, fracasso, morte, fazem parte da extraordinária tragédia humana, que Shakespeare nos apresentou entre 1590 e 1613. Quatro séculos se passaram e a história nos é tão familiar e atual.
Somos reféns da nossa natureza que, apesar do imenso avanço científico, tecnológico e filosófico, obedece a primitivos e imperativos desejos de poder e soberania dos desejos individuais. Não aceitamos a incompletude!
O que fazer com nossas insuficiências?
Reparem nesta linda frase, da peça A Tempestade: “Somos feitos da matéria de que são feitos os sonhos”.
E como somos! Os sonhos que sonhamos dormindo, os sonhos que sonhamos acordados, nossos devaneios, os sonhos que sonhamos a dois, os sonhos sonhados nas sessões de análise pelo analisando e seu analista. O sonho nos constitui.
O universo simbólico e a renúncia ao desejo nos configura como humanos.
Freud afirma que o sonho é a tentativa de elaboração dos conflitos pulsionais, a realização dos desejos infantis. Hoje, vamos além ao entender que o sonho já é a elaboração dos conflitos.
O que seria da humanidade se não houvesse os sonhos? Se não houvesse as artes, o teatro, a literatura, a beleza?
Precisamos de Freud! Precisamos de Shakespeare!
Há 16 anos, faço parte e coordeno o grupo de estudo Conversando com Shakespeare, que se reúne mensalmente na sede da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo. Dessa experiência nasce o livro Shakespeare: paixões e psicanálise (Editora Blucher, 2019), composto por alguns integrantes do grupo e todos os profissionais que ao longo dos anos, nos apresentaram o Bardo e sua magistral obra.
*Heloisa Helena Sitrângulo Ditolvo é psicanalista, membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP), da International Psychoanalytical Association (IPA), da Federação Psicanalítica da América Latina (Fepal) e da Federação Brasileira de Psicanálise (Febrapsi). É coordenadora do setor de simpósios, cursos e jornadas da Diretoria de Atendimento à Comunidade da SBPSP (DAC) e do Grupo de Estudos Conversando com Shakespeare, da SBPSP.