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Contar um sonho ? Por quê? Para quem?

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Talya S. Candi

Os sonhos ampliam nossa consciência do mundo, resgatam o potencial criativo infantil que permaneceu congelado à espera de respostas e permitem que nos apropriemos de pedaços desconhecidos ou até mortos da nossa personalidade. Sonhar enriquece nossa vida e torna o dia a dia mais pleno e interessante.

Mas, para que isso aconteça, não basta sonhar. Um sonho precisa ser lembrado, transformado em linguagem e contado para alguém que esteja disposto a escutar com atenção e interesse.

A Psicanálise nasce com a interpretação do sonho. O psicanalista, pela sua formação na ciência do inconsciente, está familiarizado com o trabalho mental que foi realizado e a força das resistências que foi vencida para lembrar e transformar os conteúdos dispersos e as imagens imprecisas e loucas que invadem nossa mente e povoam a vida noturna em algo que posso ser chamado de sonho.

Num lindo documentário sobre o psicanalista Jacques Lacan (que pode ser encontrado facilmente no YouTube), Gerard Miller conta que uma das maiores qualidades de Jacques Lacan era a sua capacidade ímpar de atenção e de escuta. Esta atenção viva ressoava intensamente (como um amplificador de som) e despertava nos pacientes um interesse às vezes inexistente na vida secreta das palavras. “A palavra analítica desenluta a linguagem”, nos diz o psicanalista André Green[1] . Ela desperta os afetos, os anseios e as histórias que jazem adormecidos na nossa fala.  A análise convoca a fala das origens, o nascimento da própria palavra que resulta de um luto primordial.

Esta escuta atenta que se debruça sobre a palavra na sua origem faz com que a lenta magia das palavras[2] passe a operar transformações: a pessoa sente-se repentinamente existindo por dentro e para dentro.

Este mundo fascinante e aterrorizante das histórias dos lutos escondidos nas palavras retorna nas imagens dos sonhos. É muito comum ouvir dizer: “ontem sonhei “. Comum também é a pessoa completar a frase com um: “mas não lembro do sonho”.  Os sonhos são feitos de imagens, na maioria das vezes imprecisas, obscuras que não obedecem à lógica comum. Por isso é difícil lembrá-los.

O que acontece para que nossa memória não guarde os sonhos? Recordar um sonho, deixar-se impregnar pelas imagens e deixar que imagens e cenas estranhas entrem na consciência, exige coragem e disposição para o assombro[3] . O sonho é o continente dos núcleos psicóticos das nossas dores profundamente humanas e revela nossa loucura privada do qual não queremos nos aproximar porque questionam nossas certezas e abalam nossa segurança. .

Em seu artigo de 1915 sobre o recalque, considerando dois tipos diferentes de representações, Freud diz:“A diferença não tem importância : ela equivale mais ou menos a saber se eu expulso um hóspede indesejado da minha sala de visitas ou se tendo-o reconhecido, não o deixo sequer transpor o limiar da minha residência “ .  As imagens do sonho são sempre hóspedes indesejáveis, por vezes aterrorizadores, que procuram entrar na sala de visita da nossa mente num momento em que nos encontramos dormindo e terrivelmente indefesos………

Grande parte da experiência emocional do sonho provem deste primeiro e corajoso passo que consiste em hospedar um estranho na nossa intimidade num momento de fragilidade.  Na maioria das vezes, não deixamos a representação sequer transpor o limiar da nossa mente e a empurramos para dentro  do porão do esquecimento. No entanto, a voz do afeto, a voz do impulso vital que criou o sonho, permanece viva, exigindo passagem e reconhecimento.  Por isso que sonhos podem permanecer em espera às vezes durante longos anos até poder ser lembrados e finalmente sonhados.

Como lembrar de imagem e histórias nas quais os personagens e os tempos se entrelaçam de um jeito irracional e assustador?  Como aceitar, por exemplo, que a voz de um tio muito querido desaparecido há anos possa reaparecer no latir de nosso cachorro de estimação?    Ou ainda como lidar na véspera do seu casamento com a imagem de um vestido branco cheio de lama?

Ao ser recordado, o sonho re-acorda a dor e a angustia da origem que as imagens são portadoras. Recordar é um elemento essencial de um processo constante de criação de significado e enriquecimento da significância no mundo interno. Neste sentido “recordar“ um sonho é um ato componente da nossa história pessoal em que se entrelaçam passado e presente, ajudando-nos a ter um sentimento subjetivo de nós mesmos mais coerente e coeso.

Cada vez que sonhamos e conseguimos lembrar e narrar o sonho, percorremos de novo o trajeto que fizemos outrora para aprender a falar, o trajeto que transformou as urgências vitais em afetos, imagens, palavras e finalmente em pensamento.

O sonho é o berço da nossa fertilidade mental, uma incubadora das formas simbólicas [4] ,  matéria prima da criatividade. Poder decifrar junto ao analista a questão que o sonho tenta resolver nos aproxima do pensamento inconsciente do sonho[5] . A escuta do analista transforma a narrativa do sonho: o que estava somente dentro pode ser visto de fora no contexto de uma relação afetiva significativa. O intrapsíquico entrelaça-se com um intersubjetivo, uma experiência emocional vivida e compartilhada que promove a capacidade de pensar.

 

[1] Green , André : O discurso vivo :   uma teoria psicanalítica do afeto  , ed Francisco Alves  , Sao Paulo , 1973 .

2 Rolland , Jean Claude 2004 : Parler ,  renoncer  In Revue Francaise de Psychanalyse , 2004/3 ,  vol 68  ( pg 947, 962 )

3 Nosek , Leo : A Disposição para o assombro ; Ed Perspectiva , Sao Paulo 2017 ,

4 Rocha Barros Elias & Rocha Barros Elisabeth: a construção da interpretação no espaço da intersubjetividade, Texto para apresentação do congresso de Montreal: mundo interno e processo de Transformação, 2018

5 Meyer, L. (2015). Produção Onírica e Auto análise. In ED. Talya Candi (2015) Diálogos Psicanalíticos Contemporâneos. São Paulo: (Kultur) Editora Escuta.

 

 

Talya S. Candi é Membro associado da Sociedade Brasileiro de Psicanálise de São Paulo. Autora do livro: “o Duplo Limite; O aparelho Psíquico de André Green”, publicado pela Editora Escuta  e organizadora do livro : “Diálogos psicanalíticos contemporâneos”, publicado também pela editora Escuta .

 

Fotomontagem de Grete Stern

 



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